quinta-feira, 5 de novembro de 2020

1100!

 Ave amigos!

Em novembro de 2017 alcancei a marca de 1000 aves brasileiras registradas. Depois do milhar, três anos se passaram para fechar a primeira centena. Nos últimos anos, aquele afã de conquistar lifers foi se arrefecendo, o que não impede de continuar sendo um grande barato. 

Muito além dos números, conhecer espécies novas, seu habitat, e um pouco de sua biologia, certamente é uma das melhores coisas dessa nossa atividade. Nosso país é riquíssimo em biodiversidade, nossa Natureza é nosso maior ativo. 

A princípio, sabia que a espécie que buscava como troféu para a marca alcançada, seguindo velha tradição, habitava os ameaçados campos limpos do Cerrado.

In loco descobri que dentro dessa divisão do Cerrado há ainda uma subdivisão. 

O campo limpo de murundum, curiosa formação vegetal sazonal e parcialmente inundável, é o habitat do raríssimo bacurau-de-rabo-branco (Hydropsalis candicans) em Uberaba/MG. 

No Brasil, antes de ser "descoberto" no Triângulo Mineiro, esse belíssimo bacurau só era encontrado no Parque Nacional das Emas (no Wikiaves, o último registro foi há um ano). No mundo, além desses dois pontos agora no Brasil, Paraguai e Bolívia dividem mais três localidades onde a espécie ainda pode ser encontrada (conf. Wikiaves). 


Fim de tarde no campo de murundum, Uberaba/MG

Voltando em 2017, a milésima espécie também foi um bacurau, o do-são-francisco. Na ocasião, o irmão que me ajudou a conseguir a proeza (na época praticamente não havia uma foto razoável dessa sp) foi o grande ornitólogo Wagner Nogueira. Graças à sua expertise consegui uma boa foto dele voando e com muita satisfação pude colaborar com o conhecimento da espécie através da grande obra dos Irmãos Mello, o Guia das Aves do Sudeste.

Na empreitada dos 1100, tive a ajuda de outro grande irmão, o renomado fotógrafo e escritor, Prof. Alessandro Abdala, que gentilmente me levou àquele local incrível.

Com o brother e parceiro Abdala, no campo limpo de murundum


Era somente a segunda vez que o Abdala tinha ido àquele local, que mais parecia um labirinto formado por infindáveis canaviais. Mas sua grande experiência como guia na Canastra foi decisiva não só para encontrarmos aquela preciosa ilha, como também, mais tarde, nosso carro.


No caminho imaginávamos os campos primitivos que cobriam aquelas planícies sem fim, num tempo que espécies raras, só as que já o eram naturalmente. 

Infelizmente a destruição inescrupulosa do Cerrado está secando rios, dizimando uma biodiversidade incrível, fonte de matéria-prima para a cura de inúmeras doenças, só para citar algumas dentre várias outras consequências negativas desse nosso descompromisso criminoso com as futuras gerações.


E por falar em espécies raras, no caminho, num pequeno fragmento sobrevivente, encontramos o ameaçado galito (Alectrurus tricolor). Primeira vez que encontro essa fantástica espécie fora da serra da Canastra. 

Galito, encontrado numa estreita faixa de campo nativo 


Quando enfim chegamos ao nosso destino, a cena era das mais inspiradoras. Uma energia vibrante emanava daquele fim de tarde, transmutando o cansaço (que já batia mais de mil km rodados), num tipo de euforia.


Fomos recebidos com um espetáculo da Natureza


As nuvens carregadas se mantinham isoladas, proporcionando ao mesmo tempo um belo e preocupante cenário. 

Se toda aquela chuva precipitasse sobre nós, provavelmente meus planos iriam por água abaixo.



Mas a noite caiu seca, e não demorou muito para acharmos o primeiro bacurau. 

Conhecido popularmente como curiango-do-banhado (Hydropsalis anomala), também é uma espécie rara, que nunca tinha encontrado. Encantou-me seu diminuto tamanho e sua mansidão. Nesse quesito talvez só perca para o de-rabo-branco, que chega a deixar tocá-lo! (li essa informação em algum livro)


O simpático curiango-do-banhado é outra pequena joia do Cerrado




Partimos então para mais uma grande "caçada"! 

A tática consistia em percorrer de carro duas estradas que cortavam o fragmento, utilizando lanternas para buscar o reflexo nos olhos do bacurau.

Por capricho da Natureza, muita coisa brilhava no chão daquele campo recentemente devastado pelo fogo. 

O pouco que choveu já foi suficiente para ativar o princípio vital latente naquela terra arrasada, fazendo brotar plantas que, mais tarde, ao vê-las no computador, percebi que também ajudavam a refletir a luz. 

Mas o chão estrelado não revelava o sol que procurávamos, e as estradas acabaram.

No ponto onde o Abdala o havia encontrado, saímos do carro e cada um começou as buscas num dos lados da estrada. 

Saí caminhando às cegas naquela "ilha" de murundum. 

Depois de um bom tempo de procura incessante, a falta de pontos de referência, e de êxito, me fez começar a retornar, já sem o mesmo ímpeto, para o ponto onde imaginava que estaria o carro. 

Dessa vez procurava o carro e o bacurau, sem êxito. Nem o Abdala eu conseguia achar. 

Continuei, já com o cansaço "batendo". 

Algumas horas já haviam se passado desde que a noite vencera as últimas luzes crepusculares. 

Sabia que alguma hora iria topar com o carro ou com o Abdala, mas a incômoda desesperança que já brotava foi apagada de pronto por um brilho bem mais forte que os que dominavam a paisagem. 

Era um bacurau! Mas a distância não me permitia identificá-lo. Poderia ser o quarto curiango-do-banhado, apesar de ter encontrado os outros três somente na primeira estrada.

Aos entendidos do assunto, não preciso falar da emoção quando pude detectar a característica que dá nome à espécie... 


Bacurau-de-rabo-branco, um dos seres vivos mais ameaçados de extinção do Cerrado


 

A lente desvenda o mistério do chão estrelado





Retornando, cansados e satisfeitos, falávamos sobre a situação daquele aparentemente último sobrevivente. Uma boa hipótese seria que à medida que as monoculturas foram tomando conta do seu habitat, ele foi recuando até se apegar àquela "tábua de salvação". 

Até quando? Não sabemos. 

O fogo não foi suficiente para derrotá-lo, ele está muito bem adaptado. Mas há um inimigo muito mais letal! E nosso bravo guerreiro está totalmente cercado por ele.

PS: em poucos minutos o Abdala conseguiu achar o carro

terça-feira, 20 de outubro de 2020

"O bicho tá pegando" no hotel Donati

 Ave amigos!

Já falamos aqui do hotel Donati, um lugar privilegiadíssimo por sua história e localização. 

Só pra vocês terem uma ideia, lá a gente encontra um poema exclusivo de Vinícius de Morais em sua homenagem e um chalé cujas janelas foram pintadas pelo Guignard, de tanto que gostava de sua "cabaninha" das montanhas.

Realmente, estar localizado dentro de um Parque Nacional é um diferencial. As unidades de conservação são o último refúgio de uma enorme gama de espécies vegetais e animais. 

E parece que a avifauna se sente ainda mais protegida nos jardins do hotel. 

Encontramos uma enorme variedade de espécies fazendo ninho na área, situação que não se repete quando adentramos a mata pelas trilhas. Na minha humilde opinião, tal fato pode ter a ver com um menor número de predadores, já que não costumamos encontrar cobras e rapinantes florestais à vontade em seus jardins.

A frutificação e a floração de várias plantas completam o cenário ideal para a festança que pude presenciar nessa primavera no local. Até o Duda, dono do hotel, revelou-me que esse ano o movimento nunca esteve tão grande. E não estamos falando de hóspedes comuns... 

A Natureza pulula nos jardins do hotel

Já é a segunda vez que observo uma irara se alimentando nos jardins, dessa vez das jabuticabas que estão por toda parte

Sequência de fotos de aves coletando material para os ninhos, todas tiradas nos belíssimos jardins que envolvem as dependências do hotel. 

Arredio-pálido

Caneleiro-de-chapéu-preto

Arapaçu-escamado

Realmente o bicho tá pegando!!! Outros amigos estão relatando o mesmo em suas regiões. Parece que a Natureza está fazendo hora extra pra compensar a estupidez humana. 

O canto do capitão-de-saíra é um dos mais marcantes da trilha sonora primaveril do Donati


O sabiá-ferreiro também tem presença marcante nessa trilha sonora




O belíssimo sabiá-una também é um dos protagonistas da paisagem sonora do hotel


Aliás, esse indivíduo está dando muito mole lá, quem quiser fazer boas fotos dessa sp o momento é agora 










Esse ninho do capitão-de-saíra tem dois vizinhos, um ninho de arapaçu-escamado e a recepção do hotel  

Essa saíra-viúva furtou material do ninho do capitão-de-saíra, aproveitando a ausência dos pais

O que tem de malandra, tem de bela


Alguns já estão mais adiantados, como esse Myiarchus sp., que já levava alimento pros filhotes


Fica a dica, aproveitem a primavera com segurança, o bicho tá pegando


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Rapinantes Diurnos do Quadrilátero Ferrífero, um artigo, um sonho

 Ave amigos!

Hoje, com grande alegria, compartilho com vocês um momento pra lá de especial desses últimos 40 anos de paixão pelas aves de rapina.

Tudo, pra variar, começou com uma águia. Na época ainda "chilena" (Buteo melanoleucus), e que mais recentemente (e apropriadamente) passou a se chamar "serrana" (Geranoaetus melanoleucus). 

Naquela época, pré-internet, qualquer conhecimento sobre nossas aves de rapina era preciosíssimo. Lembro-me que um dos meus programas favoritos, depois do futebol e, claro, do "raptorwatching", era visitar bibliotecas em busca de informações e imagens dos nossos rapinantes. 

Com raríssimas exceções (geralmente espécies mais icônicas, como a harpia), a grande maioria das espécies não passava de breve verbete enciclopédico. 

Sem informações, muito menos fotos, encontrar um artigo inteiro sobre uma ave de rapina era algo indescritível. E foi assim que, por volta de 2008, conheci o grande pesquisador Luiz Salvador Jr., através da publicação de seu inolvidável artigo que tornou famosas as águias-chilenas da serra do Curral. 

Doze anos depois, a mesma águia, na mesma serra


Quem diria que um dia eu pudesse estar do "outro lado"?... Que de estudioso sedento de conhecimento, pudesse virar colaborador para o ainda pouco conhecido mundo das aves de rapina? E que isso ainda aconteceria com um dos pesquisadores que sempre foi referência para mim?...

É... o mundo dá voltas... e às vezes elas nos elevam qual poderosa térmica.


Águia-serrana, reina soberana na serra do Curral

Apesar dos muitos anos de amizade virtual, conheci pessoalmente o Salvador poucos dias antes da publicação do nosso artigo que acaba de ser publicado: RAPINANTES DIURNOS (AVES: ACCIPITRIFORMES E FALCONIFORMES) DO QUADRILÁTERO FERRÍFERO, MINAS GERAIS, BRASIL. Foi o primeiro artigo que participo como autor, graças ao grande Luiz Salvador Jr., que transformou o meu lazer em ciência, inserindo meu nome na ornitologia.

Foi um encontro fantástico, exatamente onde tudo começou, na serra do Curral, com a imponente águia-chilena. 


Num mergulho vertiginoso e alucinante em nossa direção



Essa parceria com o grande Salvador está só começando! Já existe outro excelente artigo a caminho, além de outros grandes projetos despontando. 

Só tenho a lhe agradecer pela confiança, pelas oportunidades e pela valorização do meu "trabalho", meu irmão camarada!

Agradeço à Janine, minha esposa, pelo making of e pela paciência em campo



Parceria promissora

PS: Quem desejar o artigo favor deixar o email nos comentários

domingo, 9 de agosto de 2020

Passarinhar, a melhor saída II

 Já há algum tempo, através da internet, o Fábio Barata convidou-me para conhecer as aves de sua região. Como já estávamos fechados com a Trilha dos Tucanos (que só abre quarta), aproveitamos a janela de três dias para conhecermos Peruíbe, onde minha família poderia curtir uma praia sossegada enquanto eu e o Fábio "corríamos atrás" do ameaçadíssimo papagaio-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis). Demos sorte, pois apesar do inverno, rolou um praião, com temperaturas em torno dos 30 graus!  

O voo do passarinho que mais amo


A grande estrela do litoral sul de SP está restrito às suas restingas e a uma mínima área do Paraná, em regiões que sofrem grande pressão devido à ocupação humana.

O Fábio contou-me que os próprios pesquisadores do papagaio afirmam que sua região é a melhor para observá-lo. Realmente foi batata, né Barata? 

Primeiro, ao alvorecer, pudemos contemplar o espetáculo de uma grande revoada próxima a um dormitório. O Fábio estimou uns 70 indivíduos! 

Depois fomos para outro ponto certeiro, pena que pousaram nos galhos mais altos da capororoca (Myrsine l.) e partiram antes que o sol os atingisse. Mesmo assim fiquei satisfeito em flagrar um comportamento que muito nos aproxima:

Love's in the air


Com esse super lifer, ficou faltando somente uma espécie para atingir a simbólica meta de 1100 aves fotografadas. E o Fábio fez de tudo para alcançá-la, parecia que queria mais do que eu.rs Mas a saracura-lisa e o saí-de-pernas-pretas (praticamente as últimas espécies que faltavam pra mim na região) não colaboraram. A saracura fez jus à fama e não deu as caras. O saí, devido ao calor, não estava na baixada. De qualquer forma agradeço ao grande Fábio Barata por sua boa vontade e esforço.

Depois de uma deliciosa comida caseira fomos ao Mochileiros Hostel e Pousada, onde o Fábio recebe birders de todo mundo, atraídos principalmente pela estrela local. 

Lá, um comedouro muito bem frequentado rendeu ótimas fotos, destaque para a belíssima gralha-azul, que de acordo com o Fábio, provavelmente se trata de espécie diferente da que ocorre no sul do país.

Gralha-azul (Cyanocorax caeruleus), um bando pinta sempre na hora do almoço
Pica-pau-verde-barrado (Colaptes melanochloros)
Guaxe (Cacicus haemorrhous)

Obrigado por tudo Fábio, até a próxima!


No dia que fomos para a Trilha dos Tucanos (TT) o tempo mudou. Uma frente fria chegou com tudo, causando queda de temperatura e uma fina chuva contínua. Mas nada que atrapalhasse. Talvez tenha até ajudado.

Logo que chegamos fomos muito bem recebidos pela Patrícia, proprietária da TT. Após breve conversa amistosa, ofereceu a chave que, na TT, une dois mundos separados há incontáveis milênios: uma banana!

Juntei-me ao João Miguel e, a partir dali, duas crianças, com as chaves dos portais, adentraram o recinto onde a magia acontecia.

Com as chaves em riste, espécies selvagens, que vivem sob as leis da Natureza, ou seja, mantendo seus instintos de sobrevivência, quebram a barreira entre nossos mundos e levemente pousam sobre nossos corpos, que ao sentir tamanha energia, aumentam sua vibração.

E não foi somente uma sensação pessoal, de um observador de aves experiente que nunca passou por aquilo. O João, mesmo com sua personalidade serena, exclamou, durante aquela experiência sobrenatural, que estava tremendo. A partir dali convenci-me de que fiz a coisa certa. Como diz um velho amigo, valeu a pena, as asas, o voo!


Esse sorriso, essa sensação, não tem preço
   

Enquanto tentava melhorar meu registro da jacutinga e do macuco, o João listou um monte de bicho legal que comeu em sua mão! Teve até irara e caxinguelê! Entre as aves, além dos periquitos-ricos (que eram a grande maioria), saíra-sete-cores, catirumbava, araçari-banana, tiriba-de-testa-vermelha, pimentão e tucano-de-bico-verde fizeram a alegria daquela criança, que depois dessa viagem, certamente entrará para o nosso time. 

Ajeitando as coisas pra ir embora, elas vieram se despedir
Sentiram o cheiro das bananas que levávamos, explicou Patrícia

Despeço-me com alguns dos registros dessa rápida, porém intensa visita à incomparável Trilha dos Tucanos. Mas antes, deixo aqui registrado minha eterna gratidão à Patrícia e ao Marcão, pelo belíssimo trabalho realizado e pela recepção que nos fez sentir como parte da família.

Araçari-poca (Selenidera maculirostris) alimentando-se do palmito-juçara (Euterpe edulis)

Araçari-banana (Pteroglossus bailloni)

Tucano-de-bico-verde (Ramphastos dicolorus)


Pica-pau-de-cabeça-amarela (Celeus flavescens)


Tiê-de-bando (Habia rubica)
Juriti-gemedeira (Leptotila rufaxilla)