sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Grande sertão: Cavernas do Peruaçu

Mais de duas centenas de quilômetros separavam o Peruaçu de sua capital regional, Montes Claros. E ainda tinha quase uma centena e meia pra riba, pra chegar Bahia. Eita sertão grande de meu Deus!

Muita destruição, é certo. As unidades de conservação existentes no norte de Minas são uma esperança de preservação. Ameaças são constantes, incêndios, caçadores, desmatamento ilegal. Infelizmente a maioria dos parques de lá são de papel, sem infraestrutura básica ficam à mercê dessas ameaças.

O Parque Nacional Cavernas do Peruaçu pode-se dizer que é uma feliz exceção. Só se entra no Parque com guias locais credenciados. As pinturas rupestres datadas de mais de 10 mil anos merecem cuidado extra. São talvez a principal atração do Parque, junto, é claro, das cavernas que dão nome ao mesmo.


Tirando os bichos, alguém entende esses desenhos?!





Estradas bem conservadas, acessos bem cuidados, natureza protegida, além das melhorias que já estão a caminho. O Cavernas do Peruaçu está de parabéns!

Wagner, eu e o grande Ademir, guia do Parque


As chuvas enchiam a Mata Seca de vida. O verde brotava tenro em todo canto, contrastando com o pitoresco cenário rupestre.



O belíssimo sofrê curtia a chuva
Se o sofrê fica até mais bonito molhado, não podemos dizer o mesmo do bico-virado-da-caatinga


Não era só o verde que brotava, todas formas de vida brotavam em todo canto, depois da latência provocada pela seca.

A cada passo pulavam micro-sapinhos


Enyalius pictus

Megalobulimus sp


A revoada de cupins fez a festa da bicharada

Mas com certeza outra grande potencialidade do parque, claro, é a avifauna. A Caatinga e a Mata Seca formam um belo mosaico onde podemos encontrar várias espécies conhecidas e até futuras novas espécies, como por exemplo o caso do já citado asa-de-sabre-da-mata-seca.

O ameaçado arapaçu-do-nordeste, típico habitante da Mata Seca, é uma das primeiras estrelas do Parque que encontramos.

Esse deu muito show!

O Wagner sempre me disse que o raro e belo gavião-de-penacho era relativamente comum na Mata Seca. Ouvimos mais de uma vez o grande Spizaetus ornatus e na primeira delas usamos o playback para registrá-lo.

A refeição foi boa

Então fica a dica heim?! Creio que este seja o melhor lugar para encontrar essa espécie fora das condições de um ninho. O Wagner afirmou que todas as vezes que esteve lá, viu o bicho.

Outro bicho legal que apareceu bem também foi o chupa-dente.



A quantidade incrível de lagartas deve ter atraído essa nova espécie (referência: Wikiaves) para o Parque:

Papa-lagarta-de-euler

O negócio é não chegar de bico vazio
Ouvimos vários acanelados, mas sem responder ao playback, não melhorei o registro de Montes Claros.

Outra ave que muito me chamou a atenção foi o sabiá-coleira de lá, bem diferente do da Mata Atlântica, mas não menos bonito!



Chegamos no paredão onde se localizava a maior quantidade de pinturas rupestres abertas à visitação, no final da trilha do Desenho.

Viajávamos no tempo, alheio aos habitantes atuais daquele lugar mágico, até que o Wagner me chama a atenção para um deles que estava ali na área, tranquilaço, apesar dos intrusos.

Essa foi a primeira cena que vi do mocó, não tava nem aí pra gente
Ficou nessa posição uma eternidade para um roedor arisco. Pensei, que bicho manso! Depois de algum tempo, na mesma posição, deu uma espiadinha na gente.



E com toda tranquilidade do mundo, foi até seu posto para mostrar quem era o dono do pedaço.

O rei mocó!

Fomos a um mirante muito top, para nos despedirmos da Mata Seca. De lá podíamos ver o Velho Chico e a degradação da Mata Seca de baixada que outrora protegia o rio da integração nacional. Estávamos nos limites do PARNA, e mais uma vez o Wagner me proporcionou uma condição excepcional para registrar outro arapaçu ameaçado que ocorre na Mata Seca, o arapaçu-de-wagler.



E com essa vista, nos despedimos do grande sertão mineiro com a certeza de que um dia voltaremos

Grande sertão: Montes Claros

Ave!

Essa viagem foi planejada inicialmente como comemoração do niver do meu querido tio Maninho, grande companheiro de passarinhadas em terras mineiras. Iríamos para seu lugar favorito, a serra da Canastra, mas atendendo ao seu caridoso coração, preferiu não ir, o que é digno de minha profunda admiração. Agradeço-o imensamente pelo carinho e atenção dispensados à nossa querida vovó Naná.

Nesse ínterim estava conversando com o grande amigo, meu irmão camarada, Wagner Nogueira, sobre o já dilatado tempo decorrido desde nossa última viagem. Foi então que ele sugeriu uma ida ao Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no extremo norte mineiro. A isca da vez foi o bacurau-do-são-francisco (Nyctiprogne vielliardi).

Com as folgas já agendadas, as passagens pra BH compradas e o estupefamento por ver somente três fotos (pouco reveladoras, diga-se de passagem) desse bicho no Wikiaves, não titubiei! Lá fomos nós em busca do críptico caprimulgídeo num dos mais longínquos sertões mineiros, região das Cavernas do Peruaçu.

Vista de um dos mirantes do Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu

Mas antes fizemos uma escala em Montes Claros. O Wagner aproveitou para me apresentar uma futura nova espécie, que já nascerá ameaçada de extinção, o asa-de-sabre-da-mata-seca (Campylopterus calcirupicola). Ele conhece um ponto infalível dessa raríssima espécie no Parque Estadual da Lapa Grande.



Enquanto fotografava o raro beija-flor, pintou um lifer muito festejado! E ainda daquele jeito que é o melhor do mundo, inesperadamente.

Papa-lagarta-acanelado, primeiro Coccyzus observado por este que vos fala

Outro bicho bacana que pintou nessa breve visita a Montes Claros foi o tico-tico-do-são-francisco.

Brenha é o que não falta na Mata Seca, e o ilustre Arremon não saiu dela

Bem amigos, viajar com o Wagner sempre é um grande aprendizado, e um dos que mais curti dessa vez foi sobre a Mata Seca, ecossistema onde passaríamos quase todo nosso tempo.

Lembro-me das aulas da minha matéria favorita sobre uma floresta que perdia todas as folhas na época da seca, a Floresta Estacional Decidual (não me lembro de ter aprendido sobre a denominação "Mata Seca" naquela época). Mas só agora pude aprofundar um pouco meus conhecimentos sobre essa floresta incrível, muito ameaçada, alijada pelo poder público e praticamente desconhecida do nosso povo.

Até aquele momento só sabia que tal Floresta perdia completamente suas folhas durante a estação seca, e com o retorno das chuvas, na primavera, o verde brotava novamente, reiniciando o ciclo.

Os mapas que estudei no colégio não diferenciavam a Mata Seca do Cerrado, inserindo a primeira nos domínios do segundo.

Ledo engano, a Mata Seca, como pude presenciar in loco, está muito mais para a Mata Atlântica do que para o Cerrado. Aves como surucuá-variado, chupa-dente, gavião-de-penacho, nos remetem ao bioma atlântico. Árvores como jequitibá e jatobá, idem. E conhecendo tal Floresta na primavera, realmente não resta dúvida, aquela mata não tem nada a ver com o Cerrado.

Foto: Wagner Nogueira


Infelizmente, nas centenas de quilômetros que rodamos no seu domínio, alguns poucos fragmentos secundários, e até mesmo nas áreas de preservação, num passado não muito remoto, houve muito corte seletivo, mas ainda podemos encontrar alguns imponentes e centenários jequitibás.

Outro aprendizado que muito me surpreendeu foi sobre o tipo de solo que se desenvolve a Mata Seca, aliás, para minha completa surpresa, o solo é que define o ecossistema! O Cerrado, por exemplo, só se desenvolve sobre solo ácido, já a Mata Seca se desenvolve sobre solo calcário, básico, geralmente  sobre afloramentos calcários.

Floresta Estacional Decídua do PARNA Cavernas do Peruaçu

Sobre afloramento calcário
Outro dado muito interessante: as raízes das árvores da Mata Seca são superficiais, já as raízes das árvores do Cerrado são profundas, chegando a alcançar os lençóis freáticos, por isso também nunca perdem suas folhas, mesmo durante a mais rigorosa estiagem, ao contrário das árvores da Mata Seca, que perdem todas suas folhas. A floresta então se torna alva, devido à cor dos troncos nus, o que deu origem ao nome da capital do norte de Minas, Montes Claros.

Deixamos os montes já verdes da Lapa Grande e partimos para nosso destino final, Itacarambi, terra do Peruaçu e de muitos bichos legais!

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Reflexão milenar

Mil aves, amigos!

Oito anos (que parecem mil!) tentando registrar o maior número possível de espécies, foi realmente mil!

Mil maneiras de ser feliz, costuma-se dizer. No meu caso literalmente. Com o bacurau-do-são-francisco, uma das espécies mais difíceis de fotografar (há somente três fotos no Wikiaves, nenhuma reveladora, segue o link da página do bicho http://www.wikiaves.com.br/bacurau-do-sao-francisco), fecho esse ciclo que muito provavelmente não se repetirá (simplesmente porque as espécies brasileiras se contam na casa de um milhar).

Atravessando o Velho Chico com o irmão Wagner Nogueira para tentar registrar Nyctiprogne vielliardi
Registro realizado graças à expertise do grande Wagner Nogueira


Os felizardos iniciados na arte de passarinhar entendem muito bem o que quero dizer. Desbravar esse imenso e ainda rico país atrás de novas espécies realmente aflora sentimentos inenarráveis, pelo menos pra mim, afeito mais à prosa que ao verso. Mas felicidade seria uma boa e simples definição, a resumir o misto de emoções que parece nos antever o paraíso.

E quantos paraísos nosso país ainda possui...














"Ave amigos", título sugerido pela doce Clarinha, veio muito bem a calhar mesmo, pois como todas as grandes realizações humanas são feitas através do necessário concurso de pessoas que amam o que fazem, deixo aqui também a minha enorme gratidão a todos os amigos, guias e passarinheiros, que me ajudaram nessa escalada. E, claro, à minha família que sempre suportou minha ausência.


Não tenho fotos de todos, mas tenho gratidão, ave amigos!

Quis o destino que minha milésima espécie fosse registrada na minha terra, nas minhas Gerais, e ainda com "o cara", um dos maiores ornitólogos do Brasil, meu irmão Wagner Nogueira. E realmente foi coisa do destino, porque recentemente viajei com o amigo Clezio Kleske ao estado de São Paulo faltando só seis espécies para as mil, nada difícil pois ainda tenho uma boa quantidade de lifers praquelas bandas, mas o foco dessa viagem foi qualitativo e acabei voltando com 999 espécies! (confesso que quando resolvi fazer essa viagem acreditava que a milésima espécie seria o tauató-pintado)

É isso caros amigos leitores, acho que todos que chegaram até aqui são unânimes em descobrir que essa atividade transcende, e muito, a simples caçada de lifers.

Na busca por novas espécies, acabamos conhecendo as diversas culturas do incrível povo brasileiro, as diversas riquezas de nosso incrível país e lamentavelmente vemos o quão poderíamos estar melhores caso nossos governantes não fossem incrivelmente gananciosos.

Bem, mas esse blog não é sobre política, é sobre natureza, então me perdoem o desabafo!

Voltando ao nosso sofrido e querido país, não tem como não se apaixonar por ele. Seu povo simples e acolhedor, sua comida boa, sua natureza exuberante! Continuarei a fascinante caçada aos lifers, assim tudo começou, mas agora quase como pretexto para continuar conhecendo e desfrutando das dádivas recebidas por essa abençoada "terra brasilis".


sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Até tu, tauató Parte Final

Ave amigos!

Dando continuidade à história do tauató (que até o momento já teve mais de 200 visualizações, nos quatro cantos do mundo), vamos falar sobre o pré e pós tauató.

A ideia era aproveitar ao máximo o tempo disponível. Então focamos em duas espécies muito especiais. Certamente estão entre as mais belas e ameaçadas do país.

Do aeroporto partimos direto para a belíssima Ilha Comprida (devido à correria não deu tempo nem de fotografar as paisagens estonteantes do lugar), lar de uma das mais belas aves brasileiras, o alucinante guará (Eudocimus ruber), um íbis escarlate tão extraordinário que está presente em vários relatos dos primeiros europeus que aportaram por aqui.

Hans Staden, mercenário alemão que se aventurou nessas terras no século XVI, foi um dos primeiros a escrever sobre nossa natureza e deixou suas impressões sobre o guará em sua insigne obra:

 “Ha também muitos passaros singulares ali. Uma especie chamada Uwara Pirange tem seus pastos perto do mar e se aninha nas rochas, junto à terra. Tem o tamanho de uma galinha, bico comprido e pernas como as da garça, mas não tão compridas. As primeiras pennas que sáem nos filhotes são pardacentas e com ellas vôam um anno; mudam então essas pennas e todo o passaro fica tão vermelho quanto possivel, e assim persiste. As suas pennas são muitos estimadas pelos selvagens”

Acredita-se que sua área de ocorrência fosse bem maior que a atual. Além da pressão da caça, a destruição do seu habitat provavelmente ocasionou o isolamento geográfico das atuais populações, situadas praticamente em três faixas litorâneas distintas do Brasil.

Para essa primeira missão, contamos com a valiosa e indispensável ajuda do excelente guia Edson Rocha.

A estrela do Edson brilhou nesse dia! Fomos num primeiro local onde os guarás poderiam ser encontrados (eles vivem em bandos), infelizmente não estavam lá, mas mesmo assim o Edson descolou um lifer para o Clezio e uma excelente foto para mim, da saracura-matraca.

Rallus longirostris


Nesse local tivemos uma conversa não muito animadora com um barqueiro que disse que a maré estava alta o suficiente para inviabilizar nosso intento, haja vista que os guarás são mais encontrados na região aproveitando as águas rasas da maré baixa para se alimentarem. O tempo nublado com algumas nuvens carregadas também nos causava certa apreensão, mas como costumo dizer, sou amigo de São Pedro e quando a chuva vem, geralmente é pra ajudar.

Com o escasso tempo disponível, partimos então para o outro e último ponto onde poderíamos encontrá-los.

Quando estacionamos o carro o Edson relatou que quando a maré está baixa dali mesmo já poderíamos vê-los. Confesso que saí do carro um pouco desanimado, pois só vislumbrava o verde e o prateado das águas. Naquele momento o vermelho era a cor da esperança.

À medida que nos aproximávamos da beira da água, a paisagem ia se descortinando, até que o Edson avista um pequeno bando ao longe, num pequeno e aparentemente único banco de areia daquele ponto. A felicidade do encontro não foi suficiente para aplacar a frustração da grande distância.

Esse era o quadro à longa distância


Mas foi aí que a estrela do Edson brilhou! Naquele exato instante, um senhor estava prestes a retirar sua pequena embarcação de dentro d'água, mas o Edson, com toda sua notável simpatia, perguntou ao distinto senhor se ele poderia nos levar até os guarás. A melancolia se transformou em grande alegria quando o senhor prontamente se dispôs a nos ajudar!!!

Sem nenhum intuito de recompensa, nosso novo e anônimo amigo teve toda a paciência e dedicação para nos proporcionar as melhores situações possíveis para foto (quase chegamos a encalhar!). Sua verdadeira recompensa foi nossa alegria e a satisfação de fazer o bem, mostrando para aqueles estranhos viajantes as belezas de sua terra, tão bem simbolizadas pela sublimidade daquela ave.

Agradecimentos ao grande amigo Daniel Mello pelo trabalho de tratamento dessa foto



O pós tauató ficou por conta do grande Marcos Eugênio, que nos apresentou o ameaçadíssimo bicudinho-do-brejo-paulista (Formicivora paludicola), espécie que só foi descoberta em 2004, apesar de viver há poucos quilômetros do maior centro urbano da América Latina! Realmente surreal!


Bicudinho-do-brejo-paulista, na única oportunidade para fotos que ele nos proporcionou

Digno de nota também, nessa nossa breve passagem pelo vale do Paraíba paulistano, foi a visita ao Sítio do Pica-pau-amarelo, local onde Monteiro Lobato viveu e que o inspirou na criação das histórias que marcaram época. Foi uma verdadeira viagem no tempo, recomendo bastante!

É isso pessoal, despeço-me agradecendo imensamente os amigos Edson Rocha e Marcos Eugênio por nos proporcionar tantas ótimas emoções.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Até tu, tauató

Ave amigos!!!

Nessa vida tem coisas que não podemos deixar pra depois. Costumava dizer que dois bichos me desdobrariam para ir até eles caso fosse encontrado algum ninho ativo: uiraçu e tauató-pintado, duas das aves de rapina mais raras e difíceis de se encontrar.

Quando soube que o grande Duco, excelente guia de Eldorado/SP e região, havia encontrado um ninho do tauató-pintado (Accipiter poliogaster) em Iporanga/SP, "me virei" e juntamente com o grande amigo Clezio Kleske, partimos atrás desse antigo sonho.

O Duco, diga-se de passagem, é "o cara" dos rapinantes florestais da Mata Atlântica. Além de A. poliogaster, monitora vários ninhos de S. ornatus e tyrannus, sem falar que um dos três registros extra amazônicos de M. guianensis no Wikiaves é dele.

...

Iporanga tornou-se famosa no nosso meio em 2013 quando encontraram um ninho de gavião-de-penacho naquelas condições que fazem valer a velha máxima "não deixe pra depois o que se pode fazer hoje"(o ninho nunca mais foi utilizado). O privilegiado ninho colocou Iporanga no livro dos 1000 lugares que todo birder deve conhecer antes de morrer. Mas, claro, não só por isso.

Aves raras e discretas como socó-boi-escuro, sabiá-cica, bacurau-rabo-de-seda podem ser encontradas com facilidade incomum, obviamente se atendidas certas condições (sazonalidade, tempo etc). Aves como tapaculo-pintado, famoso tinhoso das brenhas, desfilam em poleiros com CEP e tudo. Substitutos ecológicos, como o corocoxó e o sabiá-pimenta, são encontrados no mesmo lugar. Não há melhor lugar para fotografar a incrível araponga. Bem amigos, a lista de atrações ornitológicas é imensa.

Carpornis melanocephala
Psilorhamphus guttatus


E ainda temos as surpresas que um lugar com tal potencial pode propiciar. Iporanga está no maior continuum que ainda resta de Mata Atlântica. Pela extensão de boas florestas, arrisco-me a dizer que qualquer espécie nativa dali ainda pode ser encontrada na região. Exemplo recente foi o fantástico registro que o Duco fez do uiraçu (Morphnus guianensis) no Parque Estadual da Caverna do Diabo, na vizinha Eldorado.

Grandes frutificações de taquara podem revelar as últimas pararus-espelho (um dos últimos lugares onde ela foi avistada, o sensacional Parque do Zizo, está no mesmo continuum). Um atento e persistente observador pode ter a imensurável satisfação de encontrar a maior águia do mundo (um guarda-parque do PETAR já me disse que a viu duas vezes), e até mesmo espécies que não costumam ser encontradas não só na região, mas em todo Brasil extra-amazônico, podem pintar, como aconteceu conosco, durante o Big Day.

Foi exatamente no local onde ocorrem simultaneamente o sabiá-pimenta (Carpornis melanocephala) e o corocoxó (Carpornis cucullata) que um passarim diferente chamou a atenção do Clézio. Bati o olho e não tive dúvida, era alguma espécie de piuí, pequeno e valente tiranídeo migrante do hemisfério norte.



Piuí-verdadeiro (Contopus virens), espécie identificada com ajuda de experientes ornitólogos

Foi o segundo registro dessa espécie na Mata Atlântica, primeiro no Wikiaves (essa sp. migra até a Amazônia). São fatos como esse que tornam nossa atividade algo muito especial.

...

Tã tã tã tã tã tã tãããã, plantão do sensacionalista!!! Acaba de findar (?) uma boa celeuma em torno da identificação de um acipitrídeo que fotografamos a cerca de 100 metros do ninho. Trata-se do macho de tauató-pintado!(p@rrraaaaaa) Mais uma vez o grande Clezio achou o bicho e quando bati o olho pensei que fosse um Accipiter bicolor. Mas quando tratava a foto percebi a falta do ferrugem na asa (o bicho era unicolor) e comparando com outras fotos, o padrão da cauda também estava diferente. Para decifrar tal enigma consultei os maiores especialistas na área.

E não é que era o tal do tauató?!!!

Ainda bem, porque foram horas de observação do ninho, durante dois dias, e o melhor que consegui foi uma foto bem mais ou menos de meia fêmea dentro do ninho.

Digno de nota foi a observação de uma super veloz perseguição a um tucano-de-bico-verde que arriscou um voo próximo ao ninho. Só vi uma imensa e pontiaguda asa branca sumindo no meio das árvores e depois de um tempo uma flecha desaparecendo dentro do ninho. A impressão que tive foi de ter visto um grande e silencioso caça da natureza. Só deu pra sentir porque o tauató-pintado é considerado uma espécie fantasma e porque é o maior Accipiter brasileiro. Outro motivo porque me enganei quando vi o macho. Do porte de um A. bicolor, não sabia que o dimorfismo nessa espécie era tão acentuado!

Somente no meio da tarde, com a temperatura muito alta, a belíssima fêmea saiu um pouco de dentro do ninho.

Confesso que voltei pra casa um pouco decepcionado, pois achava que o filhote já teria nascido, mas a surpresa do macho, dias depois, mostrou mais uma vez quão mais legal é a observação com o upgrade da fotografia.

Um adendo: por pura coincidência estávamos em Iporanga no dia do Big Day Brasil. Nunca conseguira participar, mas dessa vez estava num hotspot! Mesmo permanecendo por horas nas imediações do ninho, nossa equipe ficou em 31º lugar no ranking nacional. Qualitativamente também a lista ficou muito boa! Com destaque para piuí-verdadeiro, tauató-pintado, gavião-de-penacho, gavião-pombo-grande, macuco, bacurau-rabo-de-seda (ouvimos pelo menos três indivíduos), bacurau-tesoura-gigante, sabiá-cica etc.

A lista completa pode ser conferida aqui: http://www.taxeus.com.br/lista/10618

No dia seguinte ainda fomos ao Parque Estadual da Caverna do Diabo, onde o Duco registrara o uiraçu. Mas a chuva prometida pela meteorologia durante todo final de semana só caiu quando lá chegamos. E caiu pra valer, "em baldes", impossibilitando nossas buscas. Quem deu as caras, melhorando a foto que tinha feito no dia anterior, foi o cais-cais, um dos 5 lifers realizados nessa viagem, o que me fez alcançar a marca das 999 aves brasileiras registradas. Agora fica a questão, qual será a milésima?!

Euphonia chalybea


Captando os sons do fim do dia e aguardando o raro bacurau-rabo-de-seda
Foi uma viagem inesquecível, com muitas surpresas boas e não tão boas assim (voo perdido, acidentes materiais), mas como sempre, com muito aprendizado e novas amizades. Agradeço imensamente ao Clezio, pela paciência extrema e ótimos papos, e Duco, pela excelência e disposição. Duco, vamos ver se aquele esquema do uiraçu sai o mais rápido possível, heim?!

Ah, e para não me estender ainda mais deixei pra falar num outro post sobre o pré e pós tauató. Só lhes adianto que teve das mais belas e das mais ameaçadas aves do Brasil.

Inté!