quarta-feira, 29 de maio de 2019

Outras estrelas do Festival, parte final

Quando se pensa em passarinho, o que se passa na nossa cabeça? Um melodioso canto sobre uma árvore ou um voo num belo céu azul, certo? Talvez, se não levarmos em conta que o inusitado está sempre presente nos domínios da Natureza.

O desejo de fotografar nossas aves levou-me a conhecer um gênero fascinante, "passarinhos" com "alma" de ratinhos, algo que nunca havia imaginado existir. 


De fato, antes de me embrenhar nesse fantástico mundo, se conseguisse ver alguma espécie do gênero Scytalopus (tapaculos, macuquinhos), certamente confundiria com um pequeno mamífero. 



São do tamanho de camundongos e agem como tal, movendo-se rapidamente sobre a serrapilheira. No chão escuro e embrenhado da floresta, dificilmente conseguimos identificar mais que um pequeno vulto passando. 

Seu voo é raríssimo! Em condições normais dificilmente veremos um Scytalopus voando. Geralmente o fazem quando tem que atravessar pequenas áreas abertas, como trilhas. O som que eles emitem pode até passar por o de algum inseto, notas curtas repetidas a exaustão, como podem conferir no link: Vocalização tapaculo-ferreirinho

De fato, as espécies do gênero Scytalopus estão entre as mais difíceis de fotografar, o que torna seu registro ainda mais emocionante, verdadeiro troféu para qualquer fotógrafo de natureza.


Um dos mais desejados, endêmico do sul do Brasil e de Missiones, na Argentina, o tapaculo-ferreirinho (Scytalopus pachecoi), assim como os pedreiros, pareceu-me idêntico ao seu congênere, que também ocorre na serra do Cipó, o tapaculo-serrano (Scytalopus petrophilus). 

Achava que seria o bicho mais casca-grossa da viagem. Ledo engano... 

Certamente ficou entre os três (só no terceiro dia conseguimos fotografá-lo), mas outras duas espécies totalmente desconhecidas pra mim surpreenderam e ficaram para uma próxima vez: o tio-tio e o cisqueiro.

Agradeço o amigo Rodrigo Quadros pelo tratamento da foto 



Momento tapaculo Foto: Fernando Farias


No terceiro dia ele deu show, subindo e vocalizando nesse poleiro (foto sem crop)


A meteorologia e a época não eram das melhores, mas São Pedro mais uma vez deu uma super força e mesmo com pouca resposta ao playback, a viagem foi um sucesso! Oito lifers bem registrados e outros bichos que há muito queria fazer boas fotos, como foi o caso do sanhaçu-de-fogo. 

Picumnus nebulosus, outro lifer sulino


Só achamos essa fêmea do beija-flor-de-topete-azul, que como o futuro pinto-do-mato-do-sul, tem no sul de SP o divisor do seu congênere

Bem pessoal, com esses três fechamos os oito lifers dessa viagem. 

Despeço-me dos caros amigos leitores com mais alguns registros do inesquecível Festival do Papagaio-charão, e até a próxima, que já está aí, em busca das raridades de Paraty, com os grandes amigos Tavinho Moura, Sica e Marcos Peralta, da maravilhosa pousada OCA Paraty.

Uma joia muito encontrada no Sul, a saíra-preciosa (Tangara preciosa)


Saíra-preciosa fêmea


Sanhaçu-de-fogo, sou fã


Sanhaçu-de-fogo fêmea




Arapaçu-escamado-do-sul


O pica-pau-amarelo do grande Monteiro Lobato


O graxaim do seu Fernando
A bela curicaca




Carrapateiro trabalhando


A linda borralhara-assobiadora




A grande estrela do Festival


sábado, 25 de maio de 2019

Outras estrelas do Festival, primeira parte

Viajar para uma região desconhecida significa, pra bom entendedor, conhecer aves desconhecidas.

Esse é um dos grandes baratos do birdwatching: o novo, o imprevisível. Boa saída ao "mesmicismo" dominante.

À medida que submergimos nesse novo mundo, o "espírito caçador" vem à tona, enquanto os problemas vão ficando para trás.

Borralhara-assobiadora (Mackenziaena leachii)


É como se realizássemos uma meditação realmente transcendental, cujo foco são as aves, a Natureza.


Sanhaçu-de-fogo (Piranga flava)

Fêmea


Para nós, transcendência; para o mundo, imagens que revelam a beleza e a diversidade muitas vezes ignoradas, conhecimento do que temos a perder se não preservarmos o pouco que nos resta.

Raposa-do-campo (Lycalopex gymnocercus), com um pouco de sorte, entre uma ave e outra, encontramos mamíferos

Além da jaritataca, que não conseguimos fotografar, os graxains do seu Fernando, dono da pousada referência para birders em Urupema, a Rio dos Touros, deram show.

Cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), conhecido localmente como graxaim, convidado especial da Eco Pousada Rio dos Touros


A cada viagem os conhecimentos adquiridos vão se entrelaçando com os novos, aumentando, progressivamente, nossa admiração, a capacidade mesmo de meditar, ante a perfeição e a inteligência da Natureza.

Papagaio-charão (Amazona pretrei)


Forma-se então um círculo virtuoso. Saudável dependência de contato íntimo com a Natureza, cujos benefícios já foram comprovados por cientistas japoneses.

"Banho de floresta", assim batizaram a miraculosa imersão.

Mata nebulosa da serra catarinense (foto Bruno Dinucci)
Clima fresco, sem mosquitos... o paraíso


Sanhaçu-frade (Stephanophorus diadematus)


Foi muito interessante encontrar o pedreiro (Cinclodes pabsti), endemismo das serras gaúcha e catarinense, e não identificar qualquer diferença com o pedreiro-do-espinhaço (Cinclodes espinhacensis), festejado super endemismo que atrai birders aos confins da serra do Cipó (onde ocorre em uma área de menos de quinhentos km²!), a mais de mil quilômetros ao norte.

Até 2012 tratava-se da mesma espécie.

Pedreiro (Cinclodes pabsti) na fazenda

Pedreiro a mais de 1500 m de altitude

A biogeografia é uma matéria realmente fascinante.

Algumas espécies atravessam continentes, outras se isolam em pequenas áreas.

A variedade de vocações e suas origens na evolução dos seres, desde as primeiras penas que apareceram nos dinossauros, é algo instigante. Acaso e adaptabilidade seriam explicações suficientes?


Chupa-dente (Conopophaga lineata)


Bico-grosso (Saltator maxillosus)


Curicaca (Theristicus caudatus)





Um dos pontos altos da viagem ficou por conta do pinto-do-mato-do-sul, possível nome popular dessa futura nova espécie.

Guardadas as devidas proporções, é o mesmo caso do pedreiro: duas populações do que se imaginava a mesma espécie, divididas, nesse caso, por uma barreira geográfica localizada no sul de SP, como mostra o mapa de registros da sp. no Wikiaves.






"Pinto-do-mato-do-sul (Hylopezus pintoi)"

O Fernando encantou esse daí! Disse inclusive o caminho por onde chegaria ao palco da apresentação. Lembram da tal imprevisibilidade? Toda regra tem exceção, e nesse caso, para nossa felicidade.

Na intimidade de um fantasminha 


A corujinha endêmica do sul do Brasil e países vizinhos nos proporcionou uma das melhores "caçadas" da viagem!

Logo no primeiro dia saímos atrás dela, aproveitando a estiagem, já que a previsão não era das melhores.

Paramos em um ponto de ocorrência e seguimos o protocolo. Estava ventando bastante, nenhuma resposta. Partimos pro jantar na esperança de que na volta o vento parasse. Vento não combina com corujada.

E mais uma vez São Pedro nos ajudou.

Sem vento, a sonhada resposta agitou a noite escura.

Festejamos o som da esperança, pois tudo ainda era só expectativa. Já tive outras experiências frustrantes com corujas. Ouvi-las não significa fotografá-las.

O tempo passava. O som se aproximou um pouco mas estancou em distância fora de nosso alcance.  Outro indivíduo também respondeu distante, alimentando um misto de euforia e apreensão. Então  me lembrei das cinco vezes que tentei fotografar o caburé-acanelado. Só consegui graças ao irmão Wagner Nogueira que se embrenhou atrás do som que também não se movia.

"Vamos atrás dela pessoal!!!" Todos concordaram animados!

No breu da noite, pulamos a cerca no final da subida do barranco, atravessamos o mato seguindo o pio que permanecia parado. Estávamos convictos de que se a gente não a encontrasse, ela não nos encontraria. O som, cada vez mais próximo, mas onde estava o bicho?!

Havia uma brenha daquelas! Pensei, o bicho só pode estar ali, por isso não estamos achando. Demos a volta na brenha e lá estava ela, na altura dos olhos e a poucos metros!!! E permaneceu ali por um bom tempo, mansa...

Corujinha-do-sul (Megascops sanctaecatarinae)
Com o coração na boca!


Grimpeirinho (Leptasthenura striolata), outro festejado lifer




Noivinha-de-rabo-preto (Xolmis dominicana), ameaçado lifer que deu show, permitindo boa aproximação


A fêmea



Vou ficando por aqui para não me estender demais. Até a próxima e última parte das aves da serra catarinense.

domingo, 19 de maio de 2019

O Festival do Papagaio-charão

Um presentão de aniversário do meu maior amigo, um amigo que virou birder e um guia que virou amigo. AVE AMIGOS!!!

Assim surgiu essa sensacional excursão à cidade mais fria do Brasil, Urupema, na serra catarinense, onde milhares da espécie mais bonita de papagaio do Brasil (na minha opinião, claro) se reúnem na mata de araucária que predomina na região.

Lamentavelmente, a araucária, único pinheiro brasileiro, encontra-se em perigo crítico de extinção, restando somente 3% de sua área de ocorrência original.

O Fernando Farias, nosso excelente guia que já havia me guiado em 2016, nos contou que com a devastação das araucárias do RS os papagaios começaram a aparecer em massa na serra catarinense. Desde a década de 90, durante a safra do pinhão, a região de Urupema é o principal destino de praticamente toda a população existente do charão. Estima-se 18 mil aves!

Certamente a diminuição dessa importante fonte de alimento afetou a população do papagaio-charão (Amazona pretrei), que atualmente encontra-se vulnerável à extinção.

O pinhão e o charão possuem uma relação íntima e ancestral.

Preservando a araucária, preservamos o papagaio-charão 
O espetáculo proporcionado pela reunião de tantos charões é tão sensacional que foi criado até o Festival do Papagaio-charão para celebrar essa verdadeira maravilha da Natureza.

A quantidade de charões é muito, mas muito maior que a de peitos-roxo


O Festival tem seu auge no fim de cada dia, quando milhares de charões se reúnem em enormes bandos com seu poderoso vozerio. Um espetáculo realmente inolvidável!

Aos milhares, por toda parte, reúnem-se em sonoras revoadas conclamando o fim do dia




Os papagaios são aves muito inteligentes, a vida em sociedade desenvolve habilidades. Também são muito ariscos, nossa reputação é péssima.




Não é fácil vencer a desconfiança de um bicho com alta percepção, excelente camuflagem e uma grande capacidade de comunicação.

A despeito da grande quantidade, aproximar-se deles é difícil. Não pense que fotografá-los é molezinha...

A camuflagem deles é perfeita (como tudo na Natureza)
Há dois papagaios focados nessa cena







Bastava um alerta para uma explosão de charão!



Relembrando a Canastra do Abdala, mais uma vez a chuva foi uma aliada.

Creio que graças a ela, e da sorte, claro, conseguimos um registro de um papagaio-charão se alimentando relativamente próximo do chalé onde estávamos.

Apesar da grande quantidade de charões, há também muitas araucárias. Certamente foi um lance de muita sorte esse ter pousado próximo ao chalé, que ainda era de dois andares, o que nos proporcionou um bom ângulo.

Registrá-los em voo também é um grande desafio.

Eles passam sempre em altíssima velocidade, o dia tem que estar ensolarado (o que no nosso caso durou alguns minutos) e exige técnica e domínio do equipamento. Mas quando dá certo, captamos algo impossível de ser visto se não fosse a magia da fotografia.















Mostrando o seu(?) lado sombra


Isso me soa tão familiar...




A Clarinha exclamou, "enfeites de Natal!"










Eu e os amigos Bruno Dinucci e Fernando Farias na Cachoeira que Congela

Bem amigos, espero que tenham gostado do Festival do Papagaio-charão. Claro que nada substitui vivenciá-lo, mas essa é a minha contribuição para aqueles que não podem ir e, para quem pode, espero que seja um incentivo.

Aproveito para mais uma vez agradecer meu tio, compadre e padrinho (por merecimento) Roger, o Tigó, por mais esse grande presente em minha vida!