segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Apunhalada e à beira da extinção

 Ave amigos!

Em quatro dias: vinte horas de observação, vinte e cinco quilômetros de andanças e mil rodados, esses foram os números aproximados de uma sonhada expedição. 

Esse nosso "esforço amostral" foi praticamente nada, perto dos mais de três meses de meticulosa pesquisa do simpático casal de biólogos, Thieres e Victória. Os heróis dessa história dedicam suas vidas para que ela tenha um final feliz.

Na Reserva Caetés, com Thieres, Victória e Bruno Dinucci

Embarcamos rumo  ao circuito das Montanhas Capixabas sem imaginar o quão trágica era a situação de uma das aves mais fascinantes do planeta. 

Sabia que essa joia rara, a grande estrela ornitológica do estado do Espírito Santo, encontrava-se criticamente ameaçada, mas não sabia que estava à beira da extinção! 

"Estarrecido" talvez seja a palavra pra descrever meu sentimento ao saber que só existem onze indivíduos dessa espécie!

É deprimente pensar que sobre os nossos ombros pode cair o peso do extermínio de tão magnífico passarinho. 

Pensar que podemos viver para nunca mais ver aquele alegre bando de criaturinhas pintadas a mãos divinas... Esse é um legado que queremos deixar para as futuras gerações?!!! 


Voltando à viagem... Na ida, muita chuva e campos encharcados traziam uma certa apreensão. 

O primeiro dia de buscas foi aquém do esperado. Frio e precipitação inconstante deixavam a imponente mata desanimada. Muito pouca atividade para um lugar tão especial.

Aqui vale um parênteses: Nem tudo foi desanimador nesse primeiro dia. Foi com grande alegria que recebi a notícia que uma reserva foi criada para proteger aquele bando de Nemosia rourei. Até então somente o bando de Santa Teresa estava protegido por uma unidade de conservação.

O esquema para encontrar as saíras-apunhaladas foi o seguinte: busca ativa, num trecho relativamente curto da estrada, que limita não só a reserva, como os municípios de Castelo e Vargem Alta. Tal estrada fica no ponto mais alto do terreno, a cerca de 1200 metros de altitude, em meio a dois vales florestados.

Os meses de trabalho persistente e incansável dos nossos heróis conseguiu traçar um padrão recente de deslocamento do pequeno bando de seis indivíduos. 

Imaginem, caros amigos leitores, a dificuldade que é encontrar e registrar uma irriquieta criatura de 12 centímetros de comprimento, que vive somente na copa das grandes árvores da Mata Atlântica, que possui padrões de deslocamento que variam e que não responde ao playback na maior parte do ano (quando fomos não estava respondendo, lembrando que o uso dessa técnica sempre deve ser pautada pelo minimalismo, ainda mais se tratando de uma situação tão crítica).

Ou seja, só tínhamos de concreto mesmo o padrão de deslocamento levantado pelo louvável e imprescindível trabalho do casal de biólogos, Thieres e Victória. 

Pessoal, nossos novos amigos praticamente deixaram suas vidas, famílias, para abraçarem a nobre e urgente causa de salvar tão magnífica espécie do caminho irreversível da extinção! Agora mesmo, enquanto escrevo depois de um almoço dominical quentinho em família, eles estão lá, em campo. São ou não são verdadeiros heróis?!

Outra coisa que não me saia da mente: incrível imaginar que apesar dos milhares de hectares de belas matas preservadas naquela região, só existe esse pequeno bando... As outras cinco aves restantes sobrevivem em Santa Teresa, município capixaba que fica bem mais ao norte, e que também possui grandes fragmentos de floresta preservada.

Motivos não faltam para que os pesquisadores envolvidos com a conservação dessa espécie tenham bastante trabalho...


Se o primeiro dia foi meio sombrio, o segundo nos recebeu com o brilho do astro-rei. 

Seus raios, invadindo a mata úmida, formavam uma belíssima cena com ares de esperança.

A passarinhada cantava e voava festejando o que parecia a despedida do inverno. 

Corocoxós, arapongas e tropeiros-da-serra disputavam o título de voz mais marcante da floresta.

Como de praxe, começamos a percorrer a estrada com os ouvidos atentos. A nosso favor, o hábito dessa espécie de se deslocar vocalizando, um assovio fino que pode ser detectado a uma boa distância. 

Nossa experiência com as saíras-apunhaladas no primeiro dia não passou de um ou outro breve e longínquo contato sonoro, que, lógico, causava muita adrenalina e expectativa. 

Bandos mistos numerosos acendiam nossas esperanças, mas nesses dois dias intensos de buscas, não achamos nenhuma apunhalada em nenhum deles.

No meio da manhã, quando o vai-e-vem na estrada começava a repetir o dia anterior, com suas expectativas frustradas, e a falta de fé começava a se instalar no meu espírito, imaginando um retorno melancólico depois de todo nosso esforço, Thiere, pelas ondas do rádio, nos convidava a renovar as esperanças! Ele ouvira o som delas, e pela primeira vez bem próximo da estrada! Eufóricos, como dantes, saímos em disparada, eu, Bruno e Victória. Ao nos aproximarmos dele também ouvimos a vocalização do bando e então consegui perceber uns passarinhos na copa de uma das mais altas árvores de onde nos encontrávamos.

O pequeno bando estava nos galhos mais distantes que podem ser vistos nessa imagem

Exclamei, apontando: tem uns passarinhos forrageando lá em cima, devem ser elas!!! Olhei pelo visor da câmera e as cores inconfundíveis, mesmo no emaranhado de galhos e folhas, acionaram uma incontrolável tremedeira!   

Caríssimos amigos leitores, a felicidade só não foi maior porque a distância me impediu de agraciá-los com imagens que fizessem jus à beleza ímpar dessa joia raríssima. 

Primeira imagem (estilo "onde está Whally") que fiz de N. rourei, para vocês terem ideia da dificuldade



Algo que cogitei: será que essa mancha que dá nome à sp não teria caráter biométrico, como uma impressão digital?





Forrageando


Ao longo do dia encontramos o bando mais duas vezes, na segunda conseguimos mais alguns registros, também a grande distância, e na terceira só visualizamos o voo do pequeno bando. 




Acrobáticas, as nossas estrelas estão sempre em busca de insetos


Bem amigos, foi um dia inolvidável, poderíamos discorrer muito mais sobre ele, mas respeitando nosso ideal de não tomarmos muito o tempo de vocês, despeço-me por aqui, agradecendo mais uma vez os nossos heróis e o Instituto Marcos Daniel, realizador do Programa de Conservação da Saíra-apunhalada. 

VIDA LONGA À SAÍRA-APUNHALADA!!!



14 comentários:

  1. Irretocáveis imagens e texto. Obrigado por compartilhar. Um abraço

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  2. Que situação agoniante,João. Ainda existem muitas pessoas boas por aí, pena que elas não recebem o destaque que merecem na mídia.
    Ótimos registros desses passarinhos tão queridos.

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    1. Ainda bem que aqueles que já se dedicam a causas tão nobres fazem pela elevação de seus espíritos, não pelo reconhecimento, que beneficia principalmente a vaidade humana.
      Muito grato pela consideração de sempre, meu amigo!

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  3. Primoroso como sempre, meu caro amigo. O esforço dessa dupla é louvável, e nos faz ter esperança de que dessa disforme massa de Sapiens, brote uma espécie mais consciente de seus deveres para com a mãe natureza. Há exemplos por ai, como o desse admirável casal. Torçamos para que as saíras apunhaladas consigam se reproduzir e sobreviver, apesar das condições adversas que nós criamos para elas. Ave amigos!

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  4. Querido João! Lindas fotos! Texto super empolgante!!! Senti-me na expedição, visualizando as saíras e curtindo esse encontro! Parabéns ao casal pelo esforço em prol da preservação dessa linda ave! Bjssss

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    1. Muito obrigado, amada prima! Parece uma necessidade humana compartilhar os gostos, assim como as aversões, não é mesmo? Fico feliz por conseguir transmitir momentos tão significativos para mim.

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  5. Não sei se consegui imaginar a emoção, João! Já fiz registros (de sons e fotos) de espécies raríssimas... mas numa situação como essa, creio que eu não conseguiria clicar! Parabéns pelas fotos e relato!

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    1. Obrigado, realmente as melhores posições perdi exatamente pela adrenalina da aparição.
      Perdão, mas não aparece o nome do amigo.

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  6. Prezado amigo
    Que relato maravilhoso. Conheci esse casal fe biólogos e é tudo que vc descreveu. Dedicação total, amor verdadeiro pela nossa biodiversidade, e empolgação contagiante .! Esse é o Brasil que quero abraçar. Não tive a sua sorte.pegamos chuva, frio e apenas ouvimos ao longe as saíras-apunhaladas.
    Muita adrenalina na minha caminhada e agora lendo seu relato de novo meu coração disparou.
    Espero ainda ter essa sorte.
    Parabéns a vc e aos nossos heróis Thierry e Victória.

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    1. Lena, muito obrigado pelo seu emocionante relato! Tenho certeza que a próxima vez que for terá ainda mais sorte que eu.
      Abração!

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