sábado, 20 de novembro de 2021

Caboclos e tropeiros

Ave!

A relação do homem com a Natureza sempre foi de apropriação. Criamos cercas, papéis, e voilá, tomamos posse da terra, como se ela nos pertencesse, o que, aliás, não é muito lógico. Afinal, nós viemos dela e pra ela retornaremos, sem ela não existiríamos e, sem nós, ela certamente seguiria muito melhor.
 
Amigos, nós é que pertencemos à Terra - sua cerca é a gravidade e seu título de posse são as moléculas de Carbono - e apesar de sua maternal resiliência, estamos começando a ser cobrados pelo mau uso dos seus recursos, como naqueles restaurantes populares: "Cobramos seu desperdício". 

Crise climática, desertificação, extinção em massa, contaminação dos recursos hídricos são frutos de um abuso alimentado pelo sistema vigente, mas iniciativas de consumo consciente, desenvolvimento de energias sustentáveis, ciclo da gestão de resíduos, entre outras, nos dão esperança de sobrevivência nesse planeta.

Mas algumas apropriações são muito legais. Refiro-me às culturais, como alguns nomes que batizamos as aves.

Nessa última expedição, chefiada pelo Guilherme Serpa, com o Bruno Dinucci e sob a batuta do excelente guia Silvander Mendes, pelos campos de Pouso Alegre, sul de Minas, tive essa sensação.

Estávamos atrás de pequenas aves migratórias, que como caboclos e tropeiros, estão associadas aos sertões do nosso colossal país.

Caboclinho (Sporophila bouvreuil)



Vendo aquela paisagem tão familiar (fui criado praticamente na roça), de campos que se formaram com a supressão da Mata Atlântica original, e que hoje dão sustento ao gado (como na minha pequena e querida cidade), "me veio" à mente a muito bem apropriada nomenclatura popular daqueles raros passarinhos que estávamos à procura, os caboclinhos e patativas-tropeiras.

Desconheço a história desse batismo, mas ali, percorrendo aqueles largos campos, deparando-me vez ou outra com alguma criação, associei suas discretas presenças aladas aos locais onde caboclos e tropeiros, homens do campo, buscavam seu sustento e, para tanto, criavam campos de pastagem e sua consequente logística de escoamento da produção, criando assim condições também para a pousada desses pequenos e ilustres viajantes. 

Ali, se não houvessem "caboclos e tropeiros", não haveriam caboclinhos e patativas-tropeiras.

No campo, o tempo passa a galope


Motivados pela excelente estação do ano anterior, fomos em busca dos pequenos viajantes. Particularmente, procurava os caboclinhos de-chapéu-cinzento, de-papo-escuro, de-papo-branco e a patativa-tropeira, todos registrados em 2020.

Além desses lifers, haviam outros caboclinhos, como os de barriga-preta, de barriga-vermelha, coroado e o comum, todos aproveitando as sementes que brotavam nos capins.

Esses quatro últimos podiam ser encontrados com alguma facilidade e pareciam que seu grau de "arisquez" era diretamente proporcional à sua escassez no local, os mais comuns às vezes permitiam uma excelente aproximação.

Caboclinho-coroado (Sporophila pileata)




Caboclinho-de-barriga-preta (Sporophila melanogaster)



Caboclinho-de-barriga-vermelha (Sporophila hypoxantha)



Pra se ter uma ideia de sua pequenez, comparado ao já pequeno coleirinho (Sporophila caerulescens)

Aqui com uma fêmea de tiziu (Volatinia jacarina)


Vendo algumas fotos desses caboclinhos que se destacam nas redes sociais, não fazemos ideia do trabalho que dá.

A busca tem que ser ativa, percorrendo os vastos campos, atravessando obstáculos naturais e artificiais, até achar os bandos em que eles se juntam para forragear. Uma vez encontrados (os bandos), entra a expertise do guia, "batendo o binóculo" e identificando as espécies, que nem sempre estão com a plumagem "formada", o que pode facilmente confundir os não-especialistas, como foi o caso do primeiro lifer da viagem, esse caboclinho-de-chapéu-cinzento (Sporophila cinnamomea), um dos caboclinhos mais raros, ameaçado de extinção, e que passaria facilmente desapercebido se não fosse o sempre atento Silvander. 

Esse foi o único click que consegui. Quando tentei me aproximar um pouco, com um longo voo, sumiu de todos nossos radares.

Estava alimentando-se no chão, o que dificulta sua visualização e foco

A busca já é emocionante, a expectativa do imprevisível é uma constante, mas quando encontramos o tesouro que procuramos... só quem é abençoado pela paixão dessa atividade sabe o quão prazeroso é.

E foi assim que fechamos nossa expedição, com aquela maravilhosa sensação desencadeada pela exclamação do nosso mais que recomendado guia, o Silvander Mendes: "PAPO-ESCURO!!!"

A estrela do nosso guia brilhou quando ele resolveu arriscar o playback. Até então tudo parecia se repetir, uma foto de longe, praticamente desfocada, seguida de um longo voo ao limbo. 

Mas ao que tudo indica (e para alegria de todos), aquele jovem e raro viajante provavelmente estava só e ao ouvir algum "companheiro", retornou de algum lugar indetectável. Era o único caboclinho lifer pra nós três. 

S. nigricollis



Satisfeitos, partimos daqueles verdejantes campos, convictos de que só não achamos o "papo-branco" e a patativa-tropeira porque realmente não se encontravam naquelas paragens. 

Nosso guia foi impecável, não parava um minuto sequer de procurar aquelas diminutas e ariscas aves, e, certamente, sem o seu concurso, nada encontraríamos. Impossível não recomendá-lo!

Silvander, Serpa e este que vos escreve
Foto: Bruno Dinucci

Bruno Dinucci, no famoso Retão do Brejal




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