terça-feira, 26 de agosto de 2025

No Jardim da Amazônia

Deixamos a Jamacá com aquele gostinho de quero mais. 

Como sempre, focamos só nas aves, mas a Chapada dos Guimarães guarda outros tesouros a serem vislumbrados e o retorno, se Deus me permitir, é garantido. 

Uns 180 km rodados no Cerrado e nos deparamos com a Serra do Tombador, divisor geográfico do Cerrado e da Amazônia. 

Cerca de 20 km atravessando a barreira geográfica, adentramos uma planície monótona, estéril, diria até deprimente.

Os próximos 150 km foram dominados por soja e algodão, monoculturas de exportação, prática predatória que "enriquece meia dúzia", quase não gera empregos nem tributos ao país e está dizimando uma riqueza imensurável que é de todos nós brasileiros, com potencial riquíssimo e inesgotável em ecoturismo, patentes em áreas como farmácia e cosmética, exploração sustentável de produtos da floresta, como açaí, castanhas etc. 

O trecho de nossa viagem pelo Cerrado estava até relativamente preservado, tornando a viagem prazerosa, mas a paisagem após aquela serra... baixo astral total. 

Ema!!! Única interjeição boa nesse trecho, em meio a vários comentários negativos, sobre o caminho que estamos tomando. 

Só quando saímos do asfalto, seguindo a placa do nosso próximo destino, que começamos a sentir o que buscávamos, a inenarrável sensação de estar num ambiente preservado cheio de tesouros a serem descobertos.


Do algodão à água, atualização do "da água ao vinho" 


Jardim da Amazônia, oásis em meio ao deserto da ambição humana

Fomos recebidos pela Raquel Zanchet, a simpática proprietária e heroína desse lugar, cuja missão está sendo cumprida com sucesso, promovendo desenvolvimento sustentável, preservando o que há de mais valioso para o planeta, para o bem de todos.

E logo em seguida conhecemos nosso grande guia Jhonata Araujo, além de um excelente profissional, pessoa ímpar com uma incrível história de superação e que nos deu suporte em tudo, extrapolando suas funções, digno de aplausos e agradecimentos. 

Até um bolo temático ele conseguiu, para comemorarmos o aniversário do meu grande e mais antigo parceiro de passarinhadas, o multiartista Tavinho Moura.

Desejo-lhe muitos outros momentos como esse, meu amigo

O Jardim da Amazônia é conhecido principalmente por duas aves especiais. 


Tão especiais que viraram até camisas

Birders de todo mundo peregrinam até lá para encontrá-las. 

Uma, pela sua singular beleza, e outra, pela raridade e grau de ameaça.

Por um daqueles caprichos da Natureza, que gosto de pensar que é uma gratificação do imponderável, as fantásticas curicas-de-bochecha-laranja, a cada novo amanhecer, "descem" em dois pés de caju que ficam ao lado da recepção do hotel para usufruírem de alguma propriedade benéfica de sua resina. 

E o mais interessante é que há outros pés de caju no hotel, em áreas mais remotas, mas elas preferem esses dois, para deleite e comodidade de seus seguidores.

Tenho uma teoria para casos como esse (ninhos perto de casas também). 

Acredito que a segurança de um lugar onde os predadores evitam, atraem as aves. 

Cobras, aves de rapina, pequenos felinos, entre outros predadores naturais das aves, por razões óbvias, evitam locais onde há presença humana constante, e de alguma maneira parece que elas percebem isso.

Bem, mas como não existe na Natureza nosso "bater cartão", tudo pode acontecer. Além do que, há alguns códigos de conduta a serem seguidos, conforme nos explicou nosso guia. Afinal, são bichos selvagens e originalmente somos seus predadores. Até elas chegarem e começarem suas atividades, todo cuidado é pouco. 

Tanto que na primeira tentativa não houve sucesso, provavelmente devido a algum afoitismo. O que acabou gerando outras condições legais de fotografia, fora do tradicional pé de caju. 

Nosso primeiro encontro fotográfico com essa belezura, do outro lado do Rio Claro






Até que essa pousa numa árvore próxima aos pés de caju


Pyrilia barrabandi




Já a outra grande estrela do Jardim, o criticamente ameaçado tiê-bicudo, demanda uma logística mais avançada. 

Verdadeiro script é seguido, com hora marcada pra tudo, até para a aparição de nossa raridade. 

O café é servido às cinco e meia e seis horas partimos para o barco, que fica a poucos metros do restaurante. A partir dali, um belíssimo passeio sobre as águas do rio que dá nome ao município, o Rio Claro, pode já nos reservar alguma surpresa. Mas o Jhonata já avisa, we only stop for the best. Afinal, a grande estrela do lugar tem hora limite para dar o ar da graça. Isso mesmo, depois das primeiras horas do alvorecer, já não é mais encontrado à beira da maravilhosa lagoa, que, diga-se de passagem, acessamos por uma espécie de "passa-um" aquático. 

Passa-um

A lagoa do tiê-bicudo

Só esse passeio já valeria não só a pena, como as asas e o voo, contudo, após entrarmos naquele maravilhoso teatro da Natureza e posicionarmo-nos defronte uma pequena árvore à beira do lago, feita de palco para a apresentação gloriosa do nosso talentoso cantor, nem precisou do playback e em poucos minutos lá estava ele, com seu lindo canto, para euforia da plateia.

Todo mundo satisfeito

Incrível como as duas estrelas do Jardim da Amazônia cooperam com os que tornam aquele lugar viável, como se houvesse realmente uma gratidão pela preservação do ambiente que os sustenta. 

É emocionante e ao mesmo tempo nos enche de esperança ver o homem e a Natureza convivendo harmoniosamente. 

E não temos outra saída, ou vivemos essa harmonia, ou não viveremos.




Conothraupis mesoleuca




Mais quinze lifers fecharam a conta dessa viagem inolvidável, com destaque para:


Saripoca-de-gould



Udu-de-bico-largo




Topetinho-do-brasil-central




Ariramba-bronzeada



Freirinha-de-coroa-castanha


Mesmo não tendo uma boa resposta ao playback, conseguimos muitos dos lifers que ouvimos, com exceção do falcão-críptico, rendadinho, formigueiro-de-cauda-baia, formigueiro-de-cara-ruiva, papa-taoca-do-pantanal, arapaçu-elegante, uirapuru-de-chapeu-branco, chirito-do-bambu. Também ouvimos inhambu-pixuna e inhambu-relógio, que nem tentamos pois exigiria um ritual sofisticado para termos alguma chance, afinal, estamos falando de fantasmas pouco camaradas.

Alguns reencontros também marcaram:

Anambé-pombo



Choca-barrada após um banho na lagoa do tiê-bicudo




Maria-de-peito-marchetado




Araçari-castanho


Ariramba-da-mata

Martim-pescador-miúdo




E até uma anta atravessando o rio


Vou ficando por aqui, num misto de felicidade e apreensão. 

Feliz por ter vivenciado mais uma vez a Amazônia, à qual rendo profunda veneração, e conhecido a famosa Chapada dos Guimarães. 

E apreensivo pela ignorância ainda dominante, principalmente daqueles que só buscam o lucro fácil, mesmo que incontáveis formas de vida se percam ou até que o futuro de seus próprios descendentes fique comprometido. 

Mas também celebro todos que de alguma forma colaboram com a preservação ambiental e espero que um dia, quando entendermos que todas as criaturas vivas desse planeta são nossos irmãos, que todos viemos de uma célula primordial nos mares primitivos da Terra e que de alguma forma estamos todos conectados, rendamos o devido respeito à Mãe Natureza.



Foto: Sylvia Dantas

sábado, 23 de agosto de 2025

No Jamacá das Araras

 Ave, amigos!

Tudo começou em janeiro desse ano, quando juntei meus três grandes parceiros de passarinhadas, daqui do Rio e de Minas, Guilherme Serpa, Tavinho Moura e Sica Dantas, para planejarmos uma excursão ornitológica ao infelizmente castigado estado de Mato Grosso. 

Realmente é triste ver aquelas imensidões devastadas...

Apesar de tudo, alguns heróis da resistência preservam por lá cantinhos do paraíso para desfrute daqueles que possuem o dom do maravilhamento pela Natureza. E creio ser um dom mesmo, que nos transcende, principalmente ao ver tanta gente que nem zumbi, viciada em dinheiro, poder, enfim, essas coisas mundanas.

Bem amigos, esse post irá também celebrar pessoas que usaram esse dom para "fazer a diferença".

 Perdoem-me o clichê, mas precisamos muito de novas mentalidades para mudarmos o status quo suicida vigente.

E quanto àqueles que só veem lucro e morte onde a vida pulula, presos aos instintos que lhes aferroam a alma, impedindo-os de vivenciar as claridades fulgurantes da Natureza, só lamento suas mediocridades enquanto festejo com os que a ambição não obscureceu o espírito.

Chapada dos Guimarães/MT

Nosso primeiro destino, município de Chapada dos Guimarães, onde se situa o famoso Jamacá das Araras, pedaço do paraíso que o grande Mario cuida de cada detalhe com todo carinho. 


Jamacá das Araras
Foto: Mario Friedlander

Seu cuidado é extremo e só perdoa as antas, quando algo é danificado por lá. Apesar de serem muito bem alimentadas, ainda insistem em "podar" pequenas árvores em crescimento, enquanto pés de mamão são devorados literalmente até o caule. Afinal de contas, são as "jardineiras da floresta" e só exercem perfeitamente o seu papel, como tudo na Natureza.

As maiores atrações do Jamacá são realmente esses seres maravilhosos que vivem ao seu redor, em suas belas matas preservadas, e que, acostumados com o Mario, saem da proteção da densa floresta e fazem a festa de seus privilegiados visitantes. 

O mais famoso é o Dudu, na verdade uma fada que vive nos recônditos escuros da floresta e que graças ao Mario, literalmente comeu na minha mão. Momento que infelizmente não foi captado, mas há testemunhas comprobantes da peripécia.

O Dudu é o rei do lugar, mas não é o único, há dias que seis fadas pintam ao mesmo tempo, deixando estupefatos todos os presentes. 

Mas antes de apresentá-los ao Dudu, vale mencionar a recepção que tivemos assim que chegamos ao Portão do Inferno, lugar impressionante que é como um "boas-vindas" da Chapada, quando a planície se interrompe perante belíssimos rochedos esculpidos por milhões de anos de trabalho incessante da Natureza.

Foto: Mario Friedlander

Fomos honrados nesse lugar fantástico com a presença de uma família real, contando com o rei, um príncipe e seus séquitos, que os veneravam, assim como nós.




Sarcoramphus papa





O famoso e querido Dudu











Outro habitante de nossas matas que praticamente só é ouvido e que na Jamacá podemos encontrar "no limpo" é o inhambu-chintã. 

Apesar de relativamente comum onde as florestas são preservadas, é muito arisco. 

Demorei muitos anos para conseguir foto dessa espécie, que infelizmente está na mira de caçadores, o que justifica seu receio em se expor.



Crypturellus tataupa





E não podíamos deixar de registrar a anta, bicho impressionante! 

Foto de celular, sem zoom

Enquanto as antas se esbaldam a noite, de dia são as cutias que competem com os inhambus e jaós (este último infelizmente não deu as caras durante nossa breve estada).



E, claro, não podia faltar a arara, afinal, dá nome ao lugar, que também poderia se chamar Jamacá dos Dudus, das Antas, Cutias...


Enquanto as tenébrias atraem os udus e o milho, as antas, as araras matam a sede numa cavidade natural de uma árvore que é estrategicamente abastecida do precioso líquido, principalmente na época seca.

Até uma pequena torre foi construída para ficarmos mais bem posicionados.

Estávamos lá, sentados, conversando até, esperando algo acontecer, porque não só as araras, mas várias outras espécies magníficas saciam sua sede naquela e em outra cavidade próxima também. 

Quando numa rápida olhadela, quem que como num passe de mágica estava lá?! Um casal de araras-vermelhas! Incrível como dois bichos daquele tamanho chegaram tão próximo sem nenhum barulho ou vestígio qualquer que denunciasse suas presenças! 

A Natureza não cansa de nos mostrar suas perfeições...











Ara chloropterus


 A Chapada dos Guimarães, apesar da forte influência amazônica, se encontra no bioma Cerrado, tanto que encontramos espécies típicas desse bioma, como soldadinho, meia-lua-do-cerrado, mineirinho, entre tantas outras. 

350 km nos separavam do nosso próximo destino, já no bioma amazônico, a também famosa Jardim da Amazônia, que ficará para uma segunda parte.

E por aqui vou ficando, com mais algumas fotos sensacionais da Chapada feitas pelo Mario e agradecendo-o pela hospitalidade, pelas fotos de sua autoria que ilustram esse post e pela dedicação à preservação ambiental, que atualmente se encontra em sérias dificuldades no estado do Mato Grosso.










Ave, Mario! Até breve!






quarta-feira, 30 de julho de 2025

A entidade

Em meio ao que há de mais sagrado, palco originário de processos evolutivos que criaram seres perfeitos, sobreviventes ancestrais das inexoráveis leis da selva, lá fomos nós, em busca do improvável, do inefável, do onírico. Registrar o maior fantasma da Mata Atlântica.

Até pouco tempo atrás, tal feito era exclusivo a dispositivos secretos e a alguns pouquíssimos seres especiais, viventes das matas, que se dedicam a vasculhar seus segredos. E foi um desses seres iluminados que criou o encanto que conseguiu invocar nossa entidade.

Mas não pensem que baste tal magia, é necessário um rigoroso ritual.

O altar onde nos prostramos em meio à Natureza deve ser muito bem escolhido, tudo deve ser pensado antes da invocação, porque após iniciada, devemos nos fundir totalmente à quietude da mata. Sons estranhos podem afetar a total materialização da entidade.

Após construído um templo que nos integra ao sagrado, o encanto invocatório é lançado ao ar, mas seu raio de ação, devido ao poder da floresta, é limitado a cerca de 200 metros. Então, se a entidade não estiver ou entrar em seu raio de alcance, durante suas perambulações pela mata, nada acontecerá.

A primeira tentativa, no Maranhão, com o criador do encanto, o grande Mestre das matas e alquimista sonoro Luis Morais, não obteve êxito devido à não observância criteriosa de todo ritual pelos participantes. Na segunda, já em MG e com talvez o maior discípulo do Mestre Luis, o Henrique Junior, também não conseguimos o registro, apesar de sentirmos a presença bem próxima da entidade através de uma de suas transcendentais manifestações sonoras (tal manifestação foi muito interessante, porque parece que a entidade se materializou somente para vocalizar, pois não se ouviu nenhum som, nem antes e nem depois da vocalização).

Após um dia inteiro de buscas, no último dia de tentativas, novamente com o Henrique, fomos a um lugar inédito pra mim, mesmo já frequentando o PERD há décadas. 

Outro lugar fantástico, onde uma ponte se perdeu, e sem saber para onde ir, virou abrigo para aquela alta classe de seres descobridores dos segredos da Natureza. Estava lá um grupo deles, os homens-tatu-canastra.

Ponte Perdida

Atravessamos a Ponte Perdida com a esperança da última tentativa, esperança irrequieta, apreensiva. Talvez eu não fosse um escolhido. 




A imensidão dos seres seculares que íamos encontrando pelo caminho, tanto nos encantava quanto apequenava. Era um privilégio estar naquela terra de gigantes.



Durante a trilha, a primeira parte do ritual foi concluída. Zilhares de micuins seguiam o curso de suas vidas em nossas vestes e até agora, após quase uma semana do ocorrido, sinto as consequências em formas de perebas e coceiras intermitentes. O Henrique contou que todas as vezes que ele encontrou a entidade, pegou carrapato.


Templo de oração e visualização, por Henrique Junior

O local não poderia ser melhor, tinha certeza que se não fosse ali, não seria dessa vez e nem tão cedo. Era tudo ou nada! Depois de mais de uma hora de invocações, o Henrique sugeriu procurarmos em outro lugar, mas, convicto, resisti, e continuamos ali, pacientemente sonhando.

O desânimo começara a me abater, então lembrei de tudo que já havia passado com esse bicho, os estalos que começavam longe e à medida que iam se aproximando, o coração saindo pela boca, até que no máximo vultos passavam por nós e desapareciam, sem qualquer chance de retorno.

Sabia que praticamente só tínhamos uma chance, o bicho passar no raio de alcance do playback, 200 metros em meio a quilômetros quadrados de território, e ainda se aproximar sem nos notar, e ainda parar num local visível, em meio à mata escura e sub-bosque denso. 

Quase duas horas depois, estalos quebram o silêncio da mata primária, tornando trêmulas as mãos e descontrolado o coração. A cada aproximação dos estalos, a emoção aumentava. Se tivesse algum problema cardíaco, tinha empacotado ali mesmo. 

Eram dois indivíduos e muitos estalos! A mente estalava de ansiedade também! Será que dessa vez ia rolar?! 

O Henrique que notou a aparição da entidade e discretamente me avisou. 

Mirei, foquei e disparei. 

Em breves segundos aquela lenda viva nos notou e desmaterializou-se na mata, deixando um rastro de estalos e um sonho realizado. 


Neomorphus geoffroyi dulcis