quarta-feira, 30 de julho de 2025

A entidade

Em meio ao que há de mais sagrado, palco originário de processos evolutivos que criaram seres perfeitos, sobreviventes ancestrais das inexoráveis leis da selva, lá fomos nós, em busca do improvável, do inefável, do onírico. Registrar o maior fantasma da Mata Atlântica.

Até pouco tempo atrás, tal feito era exclusivo a dispositivos secretos e a alguns pouquíssimos seres especiais, viventes das matas, que se dedicam a vasculhar seus segredos. E foi um desses seres iluminados que criou o encanto que conseguiu invocar nossa entidade.

Mas não pensem que baste tal magia, é necessário um rigoroso ritual.

O altar onde nos prostramos em meio à Natureza deve ser muito bem escolhido, tudo deve ser pensado antes da invocação, porque após iniciada, devemos nos fundir totalmente à quietude da mata. Sons estranhos podem afetar a total materialização da entidade.

Após construído um templo que nos integra ao sagrado, o encanto invocatório é lançado ao ar, mas seu raio de ação, devido ao poder da floresta, é limitado a cerca de 200 metros. Então, se a entidade não estiver ou entrar em seu raio de alcance, durante suas perambulações pela mata, nada acontecerá.

A primeira tentativa, no Maranhão, com o criador do encanto, o grande Mestre das matas e alquimista sonoro Luis Morais, não obteve êxito devido à não observância criteriosa de todo ritual pelos participantes. Na segunda, já em MG e com talvez o maior discípulo do Mestre Luis, o Henrique Junior, também não conseguimos o registro, apesar de sentirmos a presença bem próxima da entidade através de uma de suas transcendentais manifestações sonoras (tal manifestação foi muito interessante, porque parece que a entidade se materializou somente para vocalizar, pois não se ouviu nenhum som, nem antes e nem depois da vocalização).

Após um dia inteiro de buscas, no último dia de tentativas, novamente com o Henrique, fomos a um lugar inédito pra mim, mesmo já frequentando o PERD há décadas. 

Outro lugar fantástico, onde uma ponte se perdeu, e sem saber para onde ir, virou abrigo para aquela alta classe de seres descobridores dos segredos da Natureza. Estava lá um grupo deles, os homens-tatu-canastra.

Ponte Perdida

Atravessamos a Ponte Perdida com a esperança da última tentativa, esperança irrequieta, apreensiva. Talvez eu não fosse um escolhido. 




A imensidão dos seres seculares que íamos encontrando pelo caminho, tanto nos encantava quanto apequenava. Era um privilégio estar naquela terra de gigantes.



Durante a trilha, a primeira parte do ritual foi concluída. Zilhares de micuins seguiam o curso de suas vidas em nossas vestes e até agora, após quase uma semana do ocorrido, sinto as consequências em formas de perebas e coceiras intermitentes. O Henrique contou que todas as vezes que ele encontrou a entidade, pegou carrapato.


Templo de oração e visualização, por Henrique Junior

O local não poderia ser melhor, tinha certeza que se não fosse ali, não seria dessa vez e nem tão cedo. Era tudo ou nada! Depois de mais de uma hora de invocações, o Henrique sugeriu procurarmos em outro lugar, mas, convicto, resisti, e continuamos ali, pacientemente sonhando.

O desânimo começara a me abater, então lembrei de tudo que já havia passado com esse bicho, os estalos que começavam longe e à medida que iam se aproximando, o coração saindo pela boca, até que no máximo vultos passavam por nós e desapareciam, sem qualquer chance de retorno.

Sabia que praticamente só tínhamos uma chance, o bicho passar no raio de alcance do playback, 200 metros em meio a quilômetros quadrados de território, e ainda se aproximar sem nos notar, e ainda parar num local visível, em meio à mata escura e sub-bosque denso. 

Quase duas horas depois, estalos quebram o silêncio da mata primária, tornando trêmulas as mãos e descontrolado o coração. A cada aproximação dos estalos, a emoção aumentava. Se tivesse algum problema cardíaco, tinha empacotado ali mesmo. 

Eram dois indivíduos e muitos estalos! A mente estalava de ansiedade também! Será que dessa vez ia rolar?! 

O Henrique que notou a aparição da entidade e discretamente me avisou. 

Mirei, foquei e disparei. 

Em breves segundos aquela lenda viva nos notou e desmaterializou-se na mata, deixando um rastro de estalos e um sonho realizado. 


Neomorphus geoffroyi dulcis


6 comentários:

  1. Sensacionaaaal meu amigo! A leitura nos transporta para o reino onírico e é possivel tambem ''sonhar'' com esta entidade. Incrivel, incrivel , incrivel...

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  2. Que relato fantástico. Descreveu com maestria como é estar lá em busca do bicho... a pior parte de tudo são os micuins. Também fiquei com reações alérgicas por mais de 15 dias. Rs um sacrifício que vale muito a pena. Fiquei muito feliz que tenha conseguido ver essa joia. .

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  3. João, o Henrique Júnior publicou o seu relato no grupo de Whatsapp do Clube Avis Vigilanti de Fotógrafos Naturalistas que eu faço parte e assim eu comecei a viajar junto com você..... Meus sinceros parabéns! Você juntou poesia e muita emoção. Há alguns meses eu ouvi um podcast do Luis Moraes e Silvia Linhares brilhantemente entrevistados pelo Henrique Júnior sobre o jacu-estalo. É exatamente como você descreveu, um estalar de dedos antes dele se desmaterializar na mata! Um super parabéns pelo relato. Adorei. Saudações de Hilton Monteiro Cristovão, Vitória-ES

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  4. Gratidão por este relato sincero e poético, pois o encontro com estes seres encantados merece ser publicado com o coração. Abs

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  5. Que texto incrível, meu amigo. Descreveu com maestria os momentos incríveis na busca desse fantasma! Muito bom compartilhar esses momentos contigo!

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