quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Ave Amazônia II

Ave amigos!

Foi só na terceira vez que visitei a Amazônia que consegui encontrar o papagaio mais fantástico do Brasil. Como é de costume, de longe, pois é uma espécie "de copa", e as árvores amazônicas estão entre os maiores seres vivos do planeta. Na torre do MUSA já o vi também, numa das cerca de quatro vezes que subi seus mais de 40 metros de altura, naquela ocasião ainda mais distante.



Primeira vez que encontrei o anacã (Deroptyus accipitrinus), RPPN Cristalino/MT, 10/2014


Dessa vez parecia que não seria diferente.



Assim, de muito longe, é como costumamos encontrá-los

Depois de um bom tempo, quando já havíamos até esquecido deles, eis que o bando alça voo e vem em nossa direção. Na mesma hora torci como numa final de copa do mundo (dos bons tempos), imaginando o quão fantástico seria se eles pousassem próximo da torre.

Foi um daqueles breves instantes em que vamos de uma grande expectativa - quando não sabemos se será decepcionante ou extasiante - a um desfecho incrível, com o pouso em uma árvore próxima.

A movimentação de crianças que pareciam querer ver o Papai Noel e a profusão de cliques não os espantou, para nosso delírio. E mesmo partindo instantes depois, aquele breve e íntimo encontro certamente foi o mais top da viagem.













Acabei dando um mole danado... não vi que a câmera estava configurada somente para JPEG, o que atrapalhou um pouco o resultado final. De qualquer forma fiquei satisfeito pois consegui atingir o objetivo que almejo em espécies como essa, o de revelar um pouco as maravilhas que a Natureza nos proporciona.

Ave Amazônia!

Ave!

Birders de todo mundo vão à Amazônia em busca de sua rica e exótica avifauna. Mais de 1000 espécies já foram catalogadas nos seus domínios, cerca de 10% de todas as espécies de aves do mundo!

Mas biodiversidade é muito mais do que ter muitas espécies num mesmo lugar. Biodiversidade significa um mundo de possibilidades valiosas.

A título de exemplo, duas das maiores indústrias do mundo se servem dela para curar e embelezar, auferindo lucros estratosféricos.

O nosso corpo é uma máquina, já disseram. E como qualquer máquina, precisa de ferramentas quando apresenta algum defeito. A biodiversidade é um conjunto de ferramentas, conhecidas, por exemplo, pelos povos indígenas, que se servem muito bem delas há milênios.

Biodiversidade significa diversidade genética. Os princípios ativos de medicamentos e cosméticos são produzidos por essa espetacular oficina. Quanto mais biodiverso, maiores serão as possibilidades.

Quantas curas já se perderam com a devastação inescrupulosa e burra da Amazônia... (com o devido pedido de desculpas ao nobre equino)

Nossas Universidades deveriam ter bases de pesquisa em toda a Amazônia, patenteando suas descobertas, ajudando economicamente o país e, principalmente, toda a humanidade.

Estudos demonstram que a floresta vale mais em pé, mas para tanto precisamos investir em muita pesquisa científica. Como sempre digo, não há outro caminho para esse país, só a educação nos libertará do subdesenvolvimento.

Enquanto isso, cidadãos fascinados pela mídia aliciadora de necessidades supérfluas, sedentos de ilusões e carentes de conhecimento, inconscientes e largados à própria sorte, são explorados pelos celerados ambientais, que vão aniquilando as chaves que poderiam abrir portas de um futuro sustentável, com menos doenças e melhor qualidade de vida.

Singular amostra da biodiversidade amazônica, protegida pelo Parque Nacional de Anavilhanas

A Natureza, para manter tal conjunto extraordinário de ferramentas, se serve de uma complexa e frágil rede, onde todos cooperam com a lei de evolução.

A retirada de uma só espécie pode causar um efeito em cadeia que certamente empobrecerá o conjunto, diminuindo nossas possibilidades. Lembrando que o homem ainda não tem tecnologia para criar tais ferramentas (corrijam-me se estiver desatualizado).

Por enquanto, a Natureza é a nossa principal fonte de manutenção.

Muitas espécies de plantas precisam das aves para dispersarem suas sementes

E para a polinização



Anacã, um dos papagaios mais incríveis do planeta







Galo-da-serra, a ave do paraíso brasileira

Fêmea do galo-da-serra




Sobre a serrapilheira, o formigueiro-ferrugem, um dos meus favoritos



A Amazônia possui uma enorme quantidade de araçaris, esse é o negro



Mas creio que os arapaçus são imbatíveis, são 43 espécies no país, a maioria ocorre na Amazônia, esse é o de bico-curvo



Esse simpático gaturamo-anão foi muito gentil



Os rapinantes desempenham fundamental papel ecológico, esse é o belo gavião-branco



O curioso mico-de-mão-dourada




O belíssimo pica-pau-de-barriga-vermelha



Surucuá-de-cauda-preta faz parte de uma família simpática, elegante e bela



Uma das espécies que mais queria encontrar, estrela do NATGEO, o maú ou pássaro-boi é deveras fantástico


Saurá, uma das maravilhas amazônicas, vale outra tentativa para melhorar o registro


Importante frisar que o sucesso de qualquer expedição depende muito do guia, ainda mais na vastidão amazônica. Dessa vez tivemos a oportunidade de trabalhar com o casal vinte de Manaus, Luiz Fernando (já pela segunda vez) e Vanilce Carvalho, a quem agradeço imensamente o profissionalismo e dedicação. Agradeço também Guilherme Serpa, pelo convite, e João L. Quental, pela companhia.



terça-feira, 20 de agosto de 2019

A águia-fantasma e o espírito da coisa, parte final

Ave amigos!
Essa cena magnífica foi a primeira que vi quando subi a torre, o filhote sozinho numa posição inusitada

Depois a grande fêmea deu o ar da graça, trazendo alimento. O Fernando disse que foi a primeira vez que ela saiu pra caçar
Cheguei à pousada por volta do meio dia, e o Fernando me perguntou se queria conhecer logo o ninho, apesar de não ser uma boa hora para fotos devido à incidência solar desfavorável. A resposta não poderia ser outra, "claro"!

Nove quilômetros de estradas margeadas por florestas separam a pousada do ninho. A fazenda é enorme e esperamos que se mantenha assim, bem preservada. 

Muitos avistamentos de harpias já foram realizados naquelas estradas, inclusive um famoso vídeo feito por drone de uma harpia com um tatu sobre uma torre de transmissão de energia. Vi também duas iraras nessa estrada. As muitas pegadas e excrementos denunciam a grande quantidade de mamíferos, principalmente antas. 

Vendo as imagens de satélite, imagino que aquele enorme fragmento - que combinado com outros de fazendas vizinhas - deva ser como uma arca de noé para a região, abrigando as espécies que perderam seu habitat para as pastagens. Somados, um continuum de mais de 30 mil hectares de florestas preserva a biodiversidade de uma das regiões mais devastadas da Amazônia.

Irara atravessando a estrada que dá acesso ao ninho

Outro fato que me surpreendeu bastante foi algo que me remeteu às aulas do colégio, sobre a pobreza do solo amazônico. É uma areia muito fina, que logo sentimos ao pegar a estrada que começa em Barra do Bugres e que dá acesso à fazenda. Lembrei-me que aprendi que o que sustenta aquela rica floresta é a matéria orgânica produzida por ela mesma, num círculo virtuoso e frágil.

Sou leigo, mas temo uma desertificação se a Amazônia não for preservada
Muito interessante também vivenciar os aspectos geográficos da região.

Saímos de Cuiabá e nas áreas ainda preservadas nos deparamos com um cerradão típico. Quando contornamos a serra das Araras (aquela famosa devido a um avistamento da rolinha-do-planalto), as primeiras formações florestais que são avistadas já são mais robustas (há muita devastação nessa região). Numa clara transição, tais florestas não chegam a ter a imponência daquelas encontradas mais ao norte, como em Alta Floresta (vejam como o nome é sugestivo), mas também não se confundem com o cerradão. Ao observar as imagens de satélite, vemos claramente que a mencionada serra "divide" a Amazônia do Cerrado, em diferentes tons de verde.

O ninho materializou o sonho de encontrar a águia-fantasma 

Voltando ao fenômeno, claro que preferiria que meu primeiro encontro com o uiraçu fosse sob a comoção que só um encontro ao acaso proporciona. Mas sabendo da dificuldade que é encontrar uma águia-fantasma, não poderia deixar essa oportunidade passar em branco.

Pesquisando um pouco pra trazer aos caros leitores um pouco de informação sobre o uiraçu, espantei-me com a escassez do bicho. As estimativas giram em torno de mil a dez mil indivíduos adultos em toda sua área de ocorrência, que vai do sul do México ao norte da Argentina.

Outra curiosidade é que estudos genéticos recentes indicam que o uiraçu pertence ao gênero Harpia, o que concordo plenamente! Nem precisamos ir tão fundo. Numa observação mesmo de longe podemos atestar empiricamente o sangue azul do bicho.

Fora da Amazônia, achar um uiraçu é como ganhar na mega sena, mesmo lá as possibilidades são remotas. A segunda foto que vi do ninho de Barra do Bugres/MT foi do renomado documentarista Lawrence Whaba. Sua vibração ao descrever a experiência é contagiante. Foi a primeira vez que encontrou esse bicho em 27 anos de profissão!

Tratamento da foto: Daniel Mello
Até onde sei esse é o primeiro ninho de uiraçu que não fica restrito à pesquisa científica. E tal fato é tão significativo que transformou a realidade de uma família e de um lugar. 

É fantástico ver a força dessa águia abrindo caminhos, levantando torre, construindo pousada, mobilizando e impactando a vida de muitos.


É o fenômeno fazendo-nos acreditar num futuro, numa vida melhor. 

domingo, 18 de agosto de 2019

A águia-fantasma e o espírito da coisa, 2ª parte

Apresentados a águia e seu refúgio, e recebendo muitos pedidos de esclarecimentos sobre as variadas nuances que envolvem o fenômeno, tentarei ajudar com algumas informações que julgo úteis.

Uiraçu, a águia-fantasma

A pousada Refúgio das Águias foi criada para realizar o sonho de encontrar esse mito de nossas florestas. E, claro, o plural se refere também ao ninho conhecido de harpia, que se encontra inativo, mas que há boas chances de se reativar quando a temporada do uiraçu acabar. Caso isso ocorra, será praticamente sempre alta temporada na "Refúgio" (importante frisar que o filhote fica mais de um ano nas imediações do ninho, usando-o como poleiro de pernoite durante todo esse tempo).

Outro dado relevante é que há um período de fortes chuvas, a partir de dezembro, que torna impraticável o ecoturismo no local. Nada mal, pois coincide também com as férias escolares, o que dá um alívio para o Fernando e sua família, que já trabalhavam intensamente na fazenda Casa Grande antes do advento da pousada.

Filhotão bocejando depois de uma farta refeição

O filhote, como vocês podem ver, já está grandinho, mas totalmente dependente da zelosa mamãe águia-fantasma que ainda fica sempre por perto. Porém, a tendência é dela se tornar cada vez menos presente, para incentivá-lo a "correr atrás", ou melhor, "voar atrás" de sua independência. Creio que isso só ocorrerá a partir de meados de setembro. Portanto, aos que forem a partir dessa data, sugiro que fiquem pelo menos dois dias, pois ficando somente um, corre-se o risco de não se ver a fêmea.

A mamãe é tão fantasma que às vezes assusta até seu filhote


A estrada de acesso à pousada é boa, mesmo os últimos 40 km de terra (dá pra ir de carro baixo). DICA IMPORTANTE: o GPS erra nos últimos 750 metros: em vez de seguir em frente, entre pela porteira à esquerda. Em 750 metros avistarás a pousada que é totalmente cercada por um muro baixo.

A pousada segue o padrão para birders, simples mas aconchegante, café da manhã bem cedo e a comida caseira nos faz sentir em casa. Destaque para o freezer com boas opções de "geladas" para aquele relax comemorativo.

Como a pousada fica próximo à mata, podemos ver bichos legais sem sair dela, como foi o caso de um flagrante muito legal de 3 gaviões-tesoura investindo contra um gavião-pato.

Combate aéreo


Há uma trilha sensacional que pode ser acessada a pé, fiz vários lifers nela, como cantador-ocráceo, saíra-mascarada, uirapuruzinho, choca-de-olho-vermelho, choca-canela, chororó-pocuá, arapaçu-de-rondônia, além de registrar outros bichos legais:

Saíra-de-cabeça-azul (Tangara cyanicollis)

Saíra-mascarada (Tangara nigrocincta)

Saíra-de-bando (Tangara mexicana)


Uirapuruzinho
Cantador-ocráceo
De uma "janela" consegui o registro da choca-de-olho-vermelho

Esse tamanduá-mirim é frequentemente encontrado na trilha, foi lifer também

Outro fato digno de nota foi a quantidade de mamíferos encontrados (não à toa há pelo menos dois casais de grandes águias na área), realmente a vida pulula naquelas bandas.

Tatu, saguis, macacos, tamanduá-mirim, iraras e uma raríssima nova espécie de macaco, um "tipo" de parauacu, que com um bocado de sorte pode ser avistado da torre do uiraçu:

Estavam urrando para sua temível predadora, numa árvore atrás do ninho, parece ser um casal


Acho que é um tatu-peba


Aliás, da torre podemos encontrar muitos outros bichos, como as já citadas saíras amazônicas, arapaçus, anambés, araçaris etc. Segue um aperitivo de lá:


Anambé-pombo

Arapaçu-de-rondônia


Sem dúvida o local por si só é top, devido à abundancia de vida selvagem. Mas além disso, e dos ilustres ninhos, há dois outros fatores que tornam esse lugar um verdadeiro paraíso na Amazônia.

Nunca imaginaria a floresta amazônica sem seus mosquitos vorazes e seu terrível mormaço. Para mim, tais fatores sempre foram o alto preço a se pagar para desbravar o local mais selvagem do planeta, sensação que só estando lá pra saber.


Vista do flutuante

Deitar sobre um flutuante, numa paisagem dessas, sob a orquestra de araras, maracanãs entre outros vozerios, e poder cochilar sem ser atacado por nuvens de sedentas muriçocas e sem se desmanchar de suor numa sauna ao ar livre era algo inimaginável pra mim.

As araras são comuns na várzea, essas foram clicadas no fim do dia


É isso pessoal, o Refúgio das Águias é pra lá de especial, sem dúvida um lugar pra se ir e voltar.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

A águia-fantasma e o espírito da coisa

Ave amigos!

Quando se pensa em águia, o que vem à nossa mente?

Aquele imponente predador alado, pousado no cume da mais alta montanha, observando altaneiro a paisagem entrecortada por profundos vales e salpicada por picos nevados.

Essa imagem, típica do gênero Aquila, está no inconsciente coletivo da humanidade.

Mas quando se trata das nossas maiores águias florestais, a coisa muda de figura... torna-se tropical, exótica, respirando a atmosfera misteriosa que envolve a última fronteira selvagem do planeta.

Enquanto Aquila sobrevoa ativamente seu vasto território, utilizando suas longas asas para "pegar" térmicas, e sua poderosa visão para detectar suas presas, Harpia e Morphnus aguardam pacientemente seu alimento, escondidas em meio à densa vegetação. Praticamente nunca voam acima do dossel, deslocando-se entre as copas das árvores.

Eis o porquê desses seres estarem entre os mais difíceis de serem encontrados na Natureza, a despeito de seu descomunal tamanho, e também entre os mais desejados - não só por birders, mas por aventureiros de variadas linhagens.


A "águia-fantasma" (Morphnus guianensis), numa raríssima materialização

O uiraçu (Morphnus guianensis) (que com a harpia são as maiores águias florestais brasileiras) é a única águia polimórfica que conheço: são duas formas claras e duas escuras, sendo as escuras as mais raras.

Seu shape impressiona pela beleza, eficiência e por "fugir do lugar comum", uma verdadeira obra-prima da evolução.

Suas asas são relativamente curtas e arredondadas, pois precisam realizar rápidas manobras para vencer os vários obstáculos do seu complexo habitat. A cauda extremamente longa também é excelente recurso para seus voos acrobáticos, funcionando como poderoso leme.

O campo de visão dentro da mata densa é muito limitado. A audição acurada aumenta as chances de detectar presas, para tanto elas podem acionar um disco facial, como o das corujas, mas que pode se retrair ao seu comando, quando mergulham sobre suas presas, por exemplo.

A cabeça relativamente pequena finaliza essa avançada "máquina de caçar dentro da floresta" (dizem que a caçada que tais predadores realizam contra bandos de macacos está entre os maiores espetáculos das selvas tropicais).

Importante salientar que a função dos predadores na cadeia alimentar é de suma importância, controlando populações e doenças, mantendo o meio ambiente equilibrado.

No mundo natural, tudo se encadeia perfeitamente. O "supérfluo" é uma criação humana. E no tocante à Natureza, só sua beleza pode assim ser definida.

Shape


O ninho da pousada Refúgio das Águias, somado à construção de uma torre, proporcionou raros registros






Encontrar um uiraçu na Natureza é, para birders, como ganhar um prêmio da loteria.

Para se ter uma ideia, a cada dez ninhos de harpia encontrados pelo "Projeto Gavião-real", somente um de uiraçu é descoberto, conforme me informou Fernando Sella, proprietário da pousada situada na fazenda Casa Grande e protagonista de uma belíssima história sobre preservação.

A fazenda de 10 mil hectares foi adquirida há quase meio século por seu bisavô e o Fernando resolveu tomar a iniciativa de cuidá-la, deixando pra trás sua distante terra natal. Apesar de pressões de vários matizes, resolveu preservar noventa por cento de suas terras (a lei obriga somente 35%) e tal nobre ação foi recompensada com a descoberta de um ninho ativo de uiraçu, que somado a um ninho já encontrado de harpia, transformou a fazenda no incrível "Refúgio das Águias". Realmente um feito extraordinário, lugar único no mundo!

Sua propriedade localiza-se no limite sul da Amazônia, um dos primeiros lugares que foram explorados pelo homem, numa época que ainda não havia limites para a devastação. Mas seus antepassados possuíam gosto pela Natureza e o Fernando aprimorou tal vocação, sendo hoje um exemplo a ser seguido, lutando para demonstrar que há meios para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Fernando, clicado pela linda Antônia, sua princesinha

Finalizo a primeira parte desse relato parabenizando o grande Fernando Sella e toda sua família pela capacidade de acreditar e lutar por um sonho que ultrapassa os limites muitas vezes mesquinhos e egoístas que nos aprisionam.